A três infusões do paraíso.
- Juliana Netto
- 29 de ago. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 29 de ago. de 2020
Da última vez que andei por aqui, a casa ainda funcionava no modo "paranóia da Juliana pegar COVID nível Mad Hard Max". Eu sou asmática de com força e, com o tratamento, tenho infecções a toda hora. A expectativa, naturalmente, era de que eu poderia ir parar na cidade do pé junto vestindo um longo de madeira, se fosse vitimada pela décima primeira praga do Egito, que é essa pandemia. QT dia dez de julho, uma sexta-feira. No sábado, amanheci com aquele 37.5°C maroto, meio barro, meio tijolo, um cansaço inexplicável, e passei o dia todo na cama, sem passeios além da cozinha e banheiro. E assim foi a semana que se seguiu... À tarde me sentia um pouco melhor, à tardinha e à noite vinham os calafrios e a febre. Pra mim era tudo, de encosto a tuberculose, menos COVID. Vamos combinar, passei cinco meses saindo unicamente pra ir ao laboratório e à clinica, e de carro, porque não arriscava pegar um Uber corongado. Sem contar aquela lavação de compras, os litros de álcool 70% em tudo e água sanitária pelo chão da casa. Não tinha como dar errado...mas deu.
Depois de quatorze dias, veio o PCR positivo. Meu primeiro impulso foi comemorar, já que eu já tinha chegado na segunda semana de doença sem precisar de internação e estava sem febre há quase dois dias. Cheguei a dar uma sambadinha de alegria pelo livramento, e confesso que tirei uma onda com azamiga porque estava prestes a ganhar minha carta de alforria pra sair do bunker do Ipiranga. Foi aí que o tal do Corona resolveu mostrar a que tinha vindo, e taca-lhe febre novamente. Surra de gato morto, até o gato miar. No meio desse sururu covídico, tive que fazer uma TC de tórax. A preguiça infinita de me deslocar até o CDPI do Leblon, me fez agendar o exame num Labs aqui da vizinhança. Pra quê, minha gente? Começou um zum zum zum de radiologistas dizendo que tinha uma imagem que podia ser qualquer coisa, inclusive uma recidiva do tumor na axila. Minha interpretação pragmática da situação foi de que, se aquele troço fosse uma recidiva, aí sim eu ia pra cidade do pé junto, porque se depois de duas cirurgias, radioterapia e fazendo infinitas sessões de QT, o negócio tivesse crescido, o jeito era organizar as Invasões Bárbaras e chutar o pau da barraca aproveitando meu resto de vida terrena. Seguiu-se a novela com um ultrassom do suvaco, também aqui pelo Flamengo. Quando cheguei pra fazer o exame e falei que era médica, pensei que a radiologista fosse cair dura, mortinha, na minha frente. A moça surtou de nervoso dizendo que não conhecia a minha história, mesmo eu explicando detalhada e calmamente os pormenores do babado todo. Saiu da sala, voltou, saiu de novo, me pediu pra esperar lá fora, voltou a me chamar, me fez deitar novamente, re-pe-tiu o exame e terminou dizendo que achava que eu tinha que fazer um PET Scan. Sensacional. A pessoa COVIDada, rastejante, e ainda por cima ameaçada de morte. Sentei perplexa na sala de espera, porque depois disso tudo, a moça resolveu liberar meu laudo no mesmo dia. Só não disse que horas ia liberar, e pelo tempo que levou, fico imaginando o sofrimento dela pra descrever o que tinha visto. Ao todo, passei três horas e quarenta minutos na unidade. Depois das duas da tarde, o cenário era desolador. Eu era a única paciente dentro do laboratório, sozinha, morta de fome, esperando o laudo de um exame em que uma médica à beira de um ataque de nervos fez questão de dizer que não podia afastar que a tal alteração fosse recidiva. Eu podia ter feito a drama queen, bebido o álcool gel da recepção cantando Cauby Peixoto mas, ao invés disso, continuei fazendo a fina enquanto escutava o atendente cloroquinion falar bolsominices. A vontade era de soltar três emas em cima do povo, mas seguia ali, fingindo paz e equilíbrio, enquanto mandava mensagens de desabafo que certamente serviriam de atenuante criminal caso eu partisse pra cima de alguém. Quando me entregaram a sacolinha com o laudo, eu nem quis ler. Saí do LABS e entrei dentro do Pão de Açúcar atrás de uma garrafa de groselha. Groselha, meus amigos! Essa era o nível de gravidade da situação. Claro que não tinha groselha no Pão de Açúcar, então, comprei duas pets de 600mL de Fanta uva. Ter vontade de comer coisas doces, no meu caso, equivale a um surto psicótico, mas a situação não tava ajudando e eu precisava de botar um açúcar pra dentro. O dia foi arrastado até que, no final da tarde, recebi uma mensagem da Dra L, a minha radio-oncologista. A santa criatura reviu minhas imagens, mandou um print da TC com uma seta apontando o troço, e disse que era cicatriz, motivo pra zero preocupação, que ela, o Dr XY e a torcida do Flamengo estavam de acordo nisso. Cês tão imaginando como foi ler isso? Eu me senti chegando numa praia linda, depois de me salvar de um naufrágio em dia de tempestade. Revendo a imagem, percebi que era exatamente em cima da cicatriz de uma axila mexida duas vezes, de onde foram removidos dezenove linfonodos. Realmente, se não tivesse fibrose, alguma coisa estaria errada...mas quem disse que eu tive paz de espírito pra ter esse raciocínio antes.
Etapa COVID e suspeita de recidiva superadas, voltei a receber o Lysoform mata tumor. Com ele, novas infecções urinárias, só rajada de glória misturada com aleluia. Da primeira vez que tive uma infecção urinária durante o tratamento, achei que tivesse parido três ouriços de apresentação transversa, mas a gente sempre pode se superar, então tive uma pielonefrite e pari uma ninhada de dez ouriços dessa vez. Tomei um certo pavor de ter outro parto de múltiplos espinhentos e comecei a tomar cápsulas de cramberries, apesar da controvérsia sobre o assunto. Se me dissessem que leite com jiló batidos com goiabada resolviam o problema, eu tomava. Podem me julgar, não ligo. Até então, os cramberries tão de parabéns, mas aceito recomendações de simpatias, banhos e terapias holísticas.
Falando em terapias holísticas, depois de décadas de resistência, comecei a fazer meditação. Eu estava como um computador de memória RAM limitada, com 150 janelas do Windows abertas ao mesmo tempo, mas sem concluir o processo de nenhuma delas. Depois de uma noite de insônia totalmente improdutiva, fui atendida pela Dra A, fisioterapeuta e terapeuta oriental. Agora faço acupuntura, coloco as sementes nas orelhas, recebo moxa e drenagem linfática, e medito todas as noites. Também pedi à Dra XX pra usar óleo de canabidiol, pra ajudar no fastio, náuseas e falta de apetite pós infusão. Eu podia ficar de boas aproveitando a anorexia pra emagrecer mais, mas prefiro me alimentar com prazer e conseguir treinar com mais dignidade.
Depois do COVID, me dei o direito de acordar bem cedo e ir correr na praia vazia. Correr ou tentar correr, depende do dia, mas o importante é reabilitar a carcaça. Confesso que tenho sentido uma emoção imensa a cada dia que chego lá, vejo o sol nascendo e sinto a água do mar molhando as minhas pernas enquanto corro na areia. Claro que não é só romance, essa sou eu e Copacabana, mesmo vazia, é cheia de personagens exóticos. Tem uns idosos que me dão bom dia, e ontem uma moça gritou perguntando se eu era a dona do João. Como assim "dona do João"? Parei de correr e disse que sim, eu era a mãe do João Pedro. A moça perguntou onde ele estava e eu respondi, achando óbvio pela hora, que ele estava em casa dormindo. A prosa seguiu num rumo meio doido, até que entendi que a moça me confundiu com a dona de um cachorro chamado João, que frequenta a praia de manhã cedo. Não vou sair de casa de bobeira, sem alguma coisa esquisita acontecer comigo. Eu tô amando essas escapadas da URSAL...
Apesar dos percalços, me dá uma alegria enorme poder aproveitar cada segundo nesse mundo. A gente se vê de cara com o Zé Maria (era assim que minha avó chamava a morte), e tudo muda de perspectiva. À medida que o tratamento venoso avança pro fim, vou me sentindo mais segura e sinto que volto a pertencer ao mundo das pessoas normais. Alguém pode dizer: mas você nunca deixou de fazer parte desse mundo. Aí é que tá o engano, e eu só consigo perceber isso agora. Ontem, durante a infusão, pedi para ir ao banheiro. Quando saí, avistei os boxes onde ficam as pessoas que fazem crioterapia (a tal touca gelada pra preservar as cabelas) durante aquela QT heavy metal. Aquela QT que dá gosto de prego e faz você ter que chupar gelo durante a infusão, pra não ter feridas na boca, como se o couro cabeludo congelado e o ar condicionado potente, juntos, já não fossem suplício suficiente. E a pessoa passa seis, sete horas ali dentro, e vai pra casa com o aquele rosto inchado de corticóide, as pernas doídas, pra atravessar semanas em que flebites, sapinhos na boca e desconfortos variados se sucedem. E removem-se as mamas e os gânglios das axilas, drenos, expansores e suas válvulas são inseridos. Você recebe um pedacinho de Chernobyl pra chamar de seu, a pele queima e escurece, os pulmões inflamam. Não, isso não é o mundo normal. É uma parte da vida da pessoa em que ela vive num universo paralelo, cheio de incertezas, medos e dores, físicas ou não. Ontem, aquela cena me doeu por dentro, com dó de quem tava ali. Uma dor que quando era eu que estava sentada naquele lugar, não doía. Não doía pra eu poder sobreviver àquilo tudo, com certeza. Na volta, quando abri o portão da vila, lembrei que agora só faltam três sessões. Meus olhos se inundaram de emoção. Estou a três infusões do paraíso.







Comentários