Aceitar (quando não dá pra descaotizar).
- Juliana Netto
- 1 de ago. de 2023
- 8 min de leitura
Aceitação
a·cei·ta·ção
1 Ato ou efeito de aceitar.
2 Ato ou efeito de concordar; anuência, aquiescência, concordância.
3 Ato ou efeito de aprovar; aplauso, aprovação.
4 Ato ou efeito de respeitar, de adotar (doutrina, teoria, posturas etc.); consideração, respeito.
Quando eu era criança, alguma coisa entre uns oito e onze anos, cismei que iria ler o Dicionário Aurélio todo, de cabo a rabo. Tudo bem que era o "Aurelinho", aquela versão de bolso que a gente levava na mochila pra escola. Não sei dizer se todo mundo carregava, mas sou filha de professora de português e quando eu perguntava alguma coisa, minha mãe respondia pra olhar no dicionário. Nas estantes da casa onde passei os primeiros anos da vida, no subúrbio, repousavam organizadas enciclopédias ilustradas de um monte de coisas. Livros sobre raças de cachorros (que junto com os filmes da Lassie ajudaram a construir meu amor pelos doguinhos), sobre marcas e tipos de carros e a minha preferida, a gloriosa "Conhecer Universal". Foi nela que li a primeira vez sobre Mozart e passei a recitar o verbete que resumia a vida dele nas festas de família: "Wolfgang Amadeus Mozart; nascido em Salzburg, 27 de janeiro de 1756, falecido em Viena, 5 de dezembro de 1791, foi influente compositor austríaco do período clássico, blablablá...". Nesses meus primeiros anos de existência, quando minha mãe ainda era estudante da faculdade de letras e literatura da UERJ, li Prometeu Acorrentado, que deve ter ido parar lá em casa como parte de alguma tarefa do curso. Livros, enciclopédias e dicionários sempre foram uma paixão e acho que por isso hoje gosto de criar neologismos e imaginar quais seriam os verbetes pras palavras que eu invento. Outro amor é a música. Minhas primeiras memórias sobre essa relação também remetem àquela sala onde moravam as enciclopédias, cujos vizinhos eram os discos de vinil e o equipamento de som que eram orgulho do meu pai. Eu lembro do dia em que chegou o disco da Arca de Noé, do Vinícius de Moraes, e também de escutá-lo repetidas vezes, sentada no carpete, com grandes fones de ouvido da marca Agena. Nessas memórias não poderia faltar minha vó (E)Figênia. Quem olha pra mim não imagina de pronto como minha avó, aquela senhorinha pequenina, menos de um metro e meio de altura, branquinha, cabelos igualmente brancos no fim da vida, que vestia combinação e anáguas nos dias de médico e igreja. Já falei antes dela e de como ela me veio à cabeça na primeira vez que estive em Portugal. Sentamos no café e todas as senhorinhas que passavam na rua me lembravam minha vó. Quando nasci, ela morava numa casa grande na Barreira do Vasco que na época era bem diferente do que é hoje. A casa era grande, tinha um canteiro cheio daquelas flores chamadas beijo, que agora tenho na janela do quarto. Tinha um jabuti enorme, tinha o Neguinho e a Maní, os cachorros, uma cama com colchão de molas onde a gente gostava de pular, e tinha a vara de bambu que ela usava pra ameaçar os netos quando a coisa tava pra desandar. Depois de um tempo, ela foi morar no mesmo prédio que a gente, no mesmo andar, no final do corredor. Tinha um detalhe, que era o braço esquerdo da vovó. Enorme, super inchado, ficava muito vermelho e quente quando fazia muito calor ou ela passava muito tempo perto do fogão. Mesmo assim, ela sempre cozinhava e no almoço todo dia tinha angu. Eu esperava pra comer a casquinha que agarrava no fundo da panela...também fritava bolinhos de chuva, que ela empanava no açúcar e canela. Eu só fui entender o porquê do braço inchado da vovó quando já era adulta e estava quase formada. Ela teve um câncer na mama esquerda que, aliás, nunca foi reconstruída. Foi submetida a um esvaziamento axilar e o braço inchado era linfedema, uma complicação pra lá de péssima do tratamento do câncer de mama.
Quando nós contamos pra minha mãe que eu estava com câncer, ela chorou muito. Hoje entendo que além da tristeza de ver a filha doente, aquilo deve ter sido um gatilho pra lembrança do tratamento da vovó Figênia, do braço inchado e pesado que ela carregava, pro tórax deformado pela falta de uma das mamas e pela grande cicatriz. Quando foi conversado pela primeira vez que eu deveria fazer o esvaziamento axilar, a primeira coisa que me veio à cabeça, por supuesto, foi o braço esquerdo da minha vó. Ah não, violão! Nem pensar nessa possibilidade! Só que Dra XX me ligou pra falar da importância do procedimento e, em nome do amor de mãe, acabei concordando em fazer. Foi a segunda cirurgia das sete que fiz nesses últimos quatro anos, um mês e algo depois de ter arrancado por completo as duas mamas. Também foi a que fiz com mais medo. Eu me agarrei à Dra. Anke Bergman com sua fisioterapia oncológica pra segurar essa bad.
Voltando ao início, claro que desisti rapidamente de ler o Aurelinho todo, mas hoje recorri ao dicionário para buscar a definição da palavra aceitação. Aceitação é o ato de aceitar, que é um verbo transitivo direto que pode significar estar de acordo ou conformar-se.
Olha, nas últimas semanas segurei a milionésima pielonefrite, os dois braços enfaixados com desconfortáveis faixas elasticas pra controlar o edema nos braços que surgiu na sequência da infecção, dor nos pés e um certo desalento por saber que essas coisas ficam indo e voltando, mas provavelmente não vão sumir de vez.
Eu não sei listar quanta coisa machucou esse coração nos últimos anos... Essa última semana me lembrou de novo que desde 2018, com a violenta morte da Marielle, seguida de cinco anos de atropelos tentando sobreviver ao imponderável, muitos planos foram pro brejo, mas enfim consegui fechar o ciclo de alimentar falsas expectativas. Não vou voltar a fazer um ironman e é possível que nem consiga voltar a correr, que era a coisa que mais me dava prazer e a sensação de estar viva. Nossa! Quando eu passo pela orla e vejo pessoas correndo, dá um aperto no coração, uma vontade de sentir de novo aquela liberdade de correr por aí, de me sentir capaz de ir a qualquer lugar com as próprias pernas, de poder correr mais de quatro, cinco, seis horas pela floresta num sábado chuvoso, vontade de sentir o cansaço batendo e até a saudade da exaustão... Ano passado, tentando treinar, eu sentia muita, mas muita dor mesmo nos pés. No começo eu achava que estava descondicionada e fazendo corpo mole, achei que fosse coisa da minha cabeça. Passei a tomar analgésicos e fui insistindo. Depois de um tempo a endorfina anestesiava tudo e, mesmo sofrendo, eu ia até o fim, mesmo parando mil vezes. Hoje eu me pergunto como fazia isso. O porquê eu sei... Eu não queria de jeito nenhum aceitar que meu corpo não era mais o mesmo depois do tratamento, que aquilo que me definia como pessoa até então, não era mais factível. Como convenver quem acreditava no "Anything is possible" que agora haviam coisas que não eram mais possíveis? Que não bastava a minha cabeça dura pra levar alguma coisa até o final. Não tivesse eu me estabacado numa poça em Florianópolis, empenado a bicicleta e destruído uma roda de carbono, teria ido até o fim, ainda que rastejando. Continuar socando o pé no chão acabou me levando a não mais conseguir pisar. Correr passou ao status de sonho e a meta passou a ser caminhar sem desmaiar de dor ao final do dia. A casa foi se enchendo de muletas, andador, cadeira de banho e, por fim, uma cadeira de rodas que grazadeus ficou pouco tempo por aqui.
Não sou nem tão teimosa (só um pouco) nem tão burra em insistir no impossível, então veio a tal aceitação. De certa forma, mesmo que a saudade de correr às vezes me arranque tímidas e disfarçadas lagrimas no canto dos olhos, a aceitação de que nem eu e nem meu corpo são os mesmos, me trouxe paz. Liberou minha memória afetiva e, como sempre, voltei ao mar. Às tardes assistindo Jacques Costeau, à minha ídola Dra Sylvia Earle que essa semana, às vesperas de completar oitenta e oito anos, veio ao Rio de Janeiro e mergulhou nas Cagarras carregando as próprias balas de O2. Sempre o mar... Adotei o stand up paddle como complemento à fisioterapia com a Nicoli Grecco, para fortalecer a musculatura dos pés e reconquistar a propriocepção. Cês num tem idéia do que é voltar a ficar em pé e andar depois de meses entre a cama e o sofá! Difícil pra caramba. Não é só a dor e a atrofia muscular, tem a falta de consciência corporal, noção de espaço...mas a fisioterapia, a prancha, o balanço mar e a esperança em sei lá o quê, estão devagar me trazendo pro prumo.
Conseguimos tirar férias juntos, finalmente. Não é licença médica, pandemia ou viagem pra cirurgia. São ferias, uns dias pra nós. Guga insistiu muito pras essas férias serem na Ilha Grande, dormindo no Ernesto, nosso idoso veleiro, que tem quase a minha idade. Demos um check num dos sonhos da vida dele! Fui resistente a princípio, porque queria um negócio menos trabalhoso e possivelmente não queria ter passado o perrengue dos primeiros cinco dias dos meus magros dez dias de férias.
Sábado, 22 de julho de 2023. Saímos da Urca em direção à Ilha Grande ainda no escuro, com os primeiros tons de lilás começando a aparecer no horizonte. Eu, Guga, Miguel, um velejador amigo dele que levou a irmã Lila e o amigo João, um marinheiro bastante experiente e, claro, nossos dois doguinhos. Toneladas de bagagem. Câmera, pés de pato, roupas pra chuva, roupas de praia, remédios, galões de água potável, de gasolina e diesel, comida pra mais de uma semana, umas garrafas de vinho, claro. Depois de quase seis horas num misto de motorar e velejar, o motor aqueceu. Desligamos o motor, tentamos ir só na vela, mas o vento rondava sem força suficiente pra empurrar o barco. O mar começou a crescer, o vento apareceu. O solavanco das ondas bateu com força no barco, perdemos o leme. O João marinheiro, que já foi capitão de navio e skipper, usou uma defensa grande pra fazer um leme. Quando criança ele fez a vela do seu primeiro barco com um lençol que ganhou da avó preso a um mastro de bambu num casco de dingue... O leme improvisado funcionou pra ganhar tempo, enquanto Guga mergulhava na água gelada pra desaquartelar o leme. Leme reposicionado, conseguimos seguir na vela até que o vento ficou muito forte. A vela mestra rasgou na hora de recolher, mas pelo menos o motor não deixou mais na mão . Eram ondas imensas, um vento terrível. O barco batia de um lado pro outro, as coisas voavam na cabine, a geladeira caiu umas três vezes. A idéia era atracar logo na praia de Palmas e passar a noite em segurança, mas batia muito ao redor da Ilha, seguimos então para uma marina em Angra, onde ficamos numa poita emprestada por uns dias, pra conseguir ajeitar as coisas.
Acordamos aliviados em Angra.
Terça, nosso filho João se juntou a nós na hora do almoço. Agora
estamos aqui, atracados na enseada do Sítio Forte, na ilha. Tem um flutuante onde um casal de caiçaras serve refeições durante o dia, que à noite fica vazio. Um céu cheio de estrelas, do jeito que eu imaginava olhando as constelações fosforescentes no teto do meu quarto de criança. Uma água cristalina que permite que a gente veja peixes aos montes, de cima do convés do barco. Dá pra remar, mergulhar e os cachorros curtem o vento na cara, embrulhados nos coletes salva vidas amarelos. Dá até pra não fazer nada... Poucos metros quadrados de area interna, uma geladeira menor que frigobar de hotel, nós três e dois cachorros juntos o dia todo. Essa combinação poderia dar errado, mas a gente ficou com calor no coração e eu percebi o quanto topar a aventura foi acertado.

Aceitar, não foi me dar por vencida, foi me abrir para possibilidades de uma vida diferente, de uma nova versão da Juliana, que pode ser tão legal quanto a outra.
Aceitar, quando não dá pra descaotizar. Pra gente se reorganizar e se reinventar.



Ahh Ju! Como eu queria ter vc no meu dia a dia!!! Vc é foda demais! Gratidão por compartilhar com tanta sinceridade, toca meu coração sempre! Te amo!!
Te amo, Ju! Que texto lindo, como sempre. Você é exemplo de vida. Bjss❤️😍
Ju,viajei com você no tempo, lembrando a querida vó Efigênia, e na aventura sob o céu estrelado.
Muitas alegrias sempre, você merece.
Beijo
Ju, quando eu crescer, quero ser como você . Admiração é pouco pra definir meu sentimento por você ! Tu és uma grande mulher! 💜
Ju, obrigada pelo lindo e profundo texto. É um ensinamento de vida. Te admiro.