Tempo de descaotizar, tempo de aMAR!
- Juliana Netto
- 15 de jan. de 2023
- 9 min de leitura
Atualizado: 16 de jan. de 2023
“Caotizar: do português (br), neologismo. Verbo transitivo direto e pronominal. Que torna caótico; que causa transtorno; que desorganiza ou descontrói a ordem natural das coisas.”
Afirmo, com relativa certeza que, com frequência maior do que gostaríamos, tem alguma coisa (ou alguém) caotizando a vida da gente. Não se trata de ser pessimista, mas vida perfeita só no Instagram e demais redes sociais onde seletivamente se exibe sorrisos e triunfos...
Para além das intercorrências e eventualidades da vida, temos a entidade karma (vou usar de licença poética aqui já que, na real, não acredito que a gente seja castigado por alguma coisa que fez numa vida passada, da qual nem se lembra). Existem vários tipos de karma. Tem karma que é coletivo. Podemos tomar como exemplo a situação do brasileiro médio, que não vive na Terra Plana, que acredita na ciência e não tem problemas com vacina, com a religião nem com a cor de pele ou orientação sexual dos outros, que gosta desse sistema interessante que rege nossa sociedade, chamado democracia. Foram quatro anos expurgando o karma coletivo brasileiro, minha gente! Vivemos uma espécie de Jogos Vorazes, cujo grande desafio foi resistir ao ataque descivilizatório imposto por um ser do pântano, mas um pântano de agonia como aquele que o Lars Von Trier criou na série Exodus, cheio de alma penada, nada a ver com as belezas do Pantanal brasileiro... Foi como a estrela da morte atirando sem piedade sobre os guerreiros da resistência. Só que o Darth Vader não trajava uma elegante e quase charmosa farda com capa preta. A estrela da morte brasileira foi comandada por uma criatura cafona, de fala tosca e linguajar chulo, que diz gostar de pão com leite condensado e se deixa fotografar comendo frango, todo sujo de farofa, pra posar de pessoa do povo.
O karma coletivo brasileiro afetou a psiquê de boa parte da população brasileira. Dentre os afetados, chuto que um pouco mais da metade, a metade que vive na Terra redonda, desenvolveu algum transtorno de ansiedade, depressão ou simplesmente ranço nível hard. A outra metade, a que vive na Terra plana, desenvolveu neuroses, delírios persecutórios e, em casos mais extremos, uma espécie de psicose delirante. O código internacional de doenças (CID-11) em breve deve incluir alguma síndrome que englobe sintomas como cantar o hino nacional pra um pneu de caminhão, ajoelhar-se chorando e miando (literalmente miau, miau) ao ser abordado pela polícia, acreditar nas fake news mais estapafúrdias e até apelar para os alienígenas. Nos momentos de crise dessa síndrome, os pacientes podem ser tomados pela incontrolável vontade de esfaquear obras de arte, fazer xixi em tapeçarias, quebrar vidros, depredar patrimônio público e até se deixar filmar com a bunda de fora, enrolados em bandeiras do Brasil, enquanto desavergonhadamente liberam um patriótico número dois, de cócoras em cima de um pedestal. Eu acho bem dramática a idéia de ser identificado pelo DNA no material fecal que largou pra trás, durante uma invasão à sede da república, mas cada um com seu cada um...
Tem karma coletivo e tem karma individual. Pra tornar mais interessante a minha vivência do karma coletivo nacional, veio junto o meu karma individual, marcado por sucessivos desafios de saúde, uma verdadeira gincana. Eu vou usar desafios, porque a palavra problema tem um peso que não combina com a leveza do momento. Sim, não vamos estragar o deslumbramento com palavras pesadas! Voltando às modalidades de karma, às vezes o individual aproveita e testa também a resiliência da família, passando a ser classificado como vivência do karma por equipes.
Da prova de resistência da nossa matriarca ao acidente no ironman de Floripa, que me levou a sair da prova de carona na van da organização até a porta do apartamento, tomando soro e analgésico na veia, com uma roda de carbono destruída, o ano de 2013 + 9 foi marcado por uma dramaticidade particular.


Há quem diga que eu sou uma pessoa resiliente. Essa resiliência tem sido construída sobre três pilares: amigos, família (ou seja, em amor) e esportes. Sempre teve a corrida e também o triathlon, universo pelo qual caminho (ou caminhava, vamos ver) há muitos anos, guiada pela luz da Marcinha, a Márcia Ferreira. Nos últimos meses, como perdi temporariamente minha capacidade de grandes deslocamentos sobre duas pernas, tive que me reinventar. E eu tô como? Trabalhada na Beyoncé e na Lemonade dela, fazendo o que posso com o que tenho pra hoje.
Eu tenho um defeito de fábrica de nome bem bonito, chamado síndrome de Ehlers-Danlos. Trata-se de uma condição em que o corpo produz um colágeno tabajara, tipo uma imitação Ali Express de colágeno. Isso faz com que os ligamentos e tendões sejam menos resistentes, frouxos, da mesma qualidade de um iPhone de seiscentos contos que tem pra vender em site da China. Essa frouxidão ligamentar deixa as articulações hiper móveis, podendo se deslocar e deformar, como é o caso dos meus pés. Eu tenho dor nos pés há décadas, aprendi a conviver com isso. Sou um tanto resistente para dor, mas esse ano a coisa passou do limite do tolerável, então procurei um especialista em pé, Dr. RM. Consegui um encaixe pra uma consulta com ele, lá nos Estados Unidos da Barra da Tijuca, numa terça de muita chuva. João acompanhou a consulta com certa surpresa, enquanto Dr RM explicava que meu pé estava colapsando. "Mas mãe, ele disse que seu pé está colapsando! Essa palavra não é muito forte?". Pois é, por aqui a gente não trabalha com nada mais ou menos. Se for pra ter uma zebra, ela tem que ser uma zebra de respeito, jamais uma zebra qualquer. Comecei mancando, usando muletas, passei a usar botinha Robocop, acrescentei um tanto de Tramal nos momentos mais críticos e, atualmente, só percorro mais de cem metros se for de carro, cadeira de rodas ou na motinho elétrica. Antecipei o plano de ser uma velha emancipada, dessas com quase cem anos, que anda pelo bairro de scooter. A motinho é vida!

Minha motinho enfeitada pro dia da eleição.
Tenho mais resistência à coisa da cadeira de rodas, mas calcei as sandálias da humildade e me deixei empurrar pelo gramado da Esplanada dos Ministérios nesse primeiro de janeiro de 2010 + 13 para, ao lado de João, Guga, Marina, Isa e Ana Paula, assistir, em meio a centenas de milhares de pessoas, àquele momento ímpar em que representantes do povo subiram a rampa do Palácio do Planalto. Voltei pra casa da Dani Russo, que estava nos hospedando em BSB, exausta, esturricada de sol, um bronzeado com a marca da bota de imobilização, mas com o coração feliz de estar vendo que fases ruins podem demorar, mas sempre passam.



Guga (meio cortado na foto), me empurrando ao lado do João, vestido com a bandeira da Mangueira.



Ana Paula e João, tipo dois super heróis revolucionários, com suas capas subversivas.

A perna esturricada. Não perguntem como aguentei o calor com aquela bota quente.
Desse jeito, venho aguardando pacientemente a autorização da cirurgia pra resolver o pé esquerdo. Pra quem já foi capaz de correr quarenta e dois quilômetros, não é fácil aceitar que ficar de pé pelo tempo de um banho seja tão doloroso. O pé direito também vai precisar de repaginação, em breve, mas vamos com calma, uma coisa de cada vez...
Se durante a quimioterapia eu arriscava meus trotes pelo Aterro do Flamengo, além de manter a rotina de pedalar no rolo assistindo TV, agora eu preciso fazer alguma coisa que não inclua deslocamento sobre duas pernas, tanto pra manter a saúde física e não ficar imensa como um javali míope, quanto para manter a sanidade mental. Foi assim que começou minha história de amor com a canoa havaiana. Aliás, o mar sempre me salva!
Vou retroceder alguns anos, pra quando eu estava muito ruim do tratamento do câncer e meu remédio era o mar. Eu podia estar anêmica e quase sem respirar, mas ia pro Posto 6, caminhava, corria, o que desse, mesmo que fosse sentar nas pedras e ficar olhando o mar. Só de pensar no barulho das ondas e na água batendo nas pernas, eu já fico mais feliz. Naquela licença prolongadíssima, comecei a ver vários filmes da Dra. Sylvia Earle, uma bióloga de oitenta e sete anos, mergulhadora, que dedicou a vida toda ao mar. Li um livro dela na pandemia, voltei às tardes com Jacques Cousteau, na infância, uma memória afetiva fortíssima!
Guga percebeu o movimento... Pelo histórico do Google, eu e João descobrimos que ele estava pesquisando direto sobre veleiros. Achei que era coisa de doido, não dei muita confiança. Barco pra mim, era coisa de rico, não era coisa pra dois funcionários públicos idealistas. Num final de semana qualquer, fomos a Paraty e reservei um passeio de veleiro pra nós três, com um casal muito massa que mora a bordo, na companhia de um vira lata lindo. Ficou todo mundo doido de felicidade, até os nossos cachorros que tinham ido junto.
Já de volta ao Errejota, ele disse que queria comprar um veleiro velho que ele tinha visto lá em Paraty, que precisava de um bocado de reforma. Disse que ia usar uma grana que estava há anos muito bem guardada no calçadão de Caxias, que não era nenhuma fortuna mas que ele tava guardando pra quando ficasse velho e sem dinheiro pra pagar os remédios. Ele é professor da rede municipal de Caxias e da FAETEC, não é do tipo que vai conseguir fazer um bom pé de meia com o salário (nem tampouco eu, eu sou boa é em pagar boletos), nem vai ter uma aposentadoria incrível. Levamos quatorze anos pra pagar a casa, mais uns tantos pra pagar o carro, porque a poupança era sagrada, só que a vida andou mostrando pra gente que às vezes é melhor aproveitar pra viver o presente da maneira mais feliz e intensa possível, porque não dá nem pra prever se a gente vai estar por aqui daqui a vinte, trinta anos...
Deu tudo errado na negociação com o barco de Paraty. Foi em meio à decepção com o negócio frusturado que ele me falou, muito emocionado e com os olhos marejados, que estava querendo um veleiro porque sabia o quanto o mar era importante pra mim e, sendo a vela, trata-se de um veículo ecológico, uma outra coisa muito importante pra essa pessoa aqui. A gente deu o abraço mais apertado em vinte e um anos, na porta da pousada do argentino que tinha desfeito o combinado. Fiquei comovidíssima, chorei junto e resolvi entrar nessa viagem com ele.
Fiz amizade com um casal de blogueiros que morava num veleiro da década de oitenta, antigo mas bem cuidado, então chamado Motion Me, ancorado no mar da Urca, perto da mureta, bem distante do glamour do Iate Clube. Desenrolamos o negócio e ele comprou o barco. Naquele pequeno espaço de poucos metros quadrados no meio da Baía de Guanabara, tão próximo e ao mesmo tempo longe do barulho da cidade, sem nenhum luxo, descalços, sem ar-condicionado, com um banheiro minúsculo onde meninos fazem xixi sentados e uma micro cozinha que tem uma única panela, que permite fazer um macarrão no enferrujado fogão que bascula, é possível esquecer do caos do dia a dia. Numa cama estreita, num quarto quase sempre muito quente, dá pra desmaiar de cansaço e acordar bem cedo, quando os pescadores começam a sair do quadrado em busca de ganhar o sustento, e ver o dia começar no cenário mais lindo do mundo. Sim, eu sou dessas cariocas chatas, que pode rodar o mundo, mas continua achando que nada supera a beleza dessa cidade caótica e cheia de contradições. A gente veleja muito pouco, a vida pra levar não anda permitindo muita graça no mar, mas saber que o veleiro, agora rebatizado de Ernesto como aquele médico revolucionário, está lá pra quando tudo ficar difícil, é um alento pro coração. A gente se alimenta de sonhos, e a gente sonha um dia aprender a velejar pra rodar por aí em busca de praias de águas claras pra atracar.

Esse barco bonitão aí não é o Ernesto, é barco onde mora um cara que cresceu no mar. Quando ele tinha doze anos de idade, ajudou o pai a construir um veleiro. Típico "lobo do mar".

Um fim de tarde de verão na Baía de Guanabara, Urca, 2021.
Deixando de lado os devaneios, em dezembro, numa manhã em que fui de motinho até a praia do Flamengo pra meditar, vi umas canoas paradas ao lado da barraca do Nuno Alegria.

Acendeu a luz, porque naquele momento enxerguei que pra remar, eu só precisaria de ir até o calçadão do Flamengo, sobre duas rodas, sentar na canoa e usar os braços, e isso me pareceu o melhor dos mundos... Seu Nuno, que é uma simpatia como o sobrenome anuncia, passou o contato do fundador do clube de canoagem EVM. Liguei pro tal Leonardo, marquei uma aula experimental. Descobri que o Léo é amigo do pessoal da escola de vela oceânica que frequentamos, que um colega muito legal também rema com ele e, pra finalizar, que ele é amigo de escola da minha amiga Mona. E descobri que dá pra ser muito feliz sem correr, mesmo que eu morra de saudades disso e pretenda um dia voltar a fazê-lo. Confirmei que não tem nada que me deixe mais em paz do que estar perto do mar e, mais uma vez, entendi que a gente sempre tem mais motivos pra manter o sorriso na cara do que pra reclamar. Ontem, rolou uma remada até as Cagarras e tive ainda mais certeza, de que não consigo ser realmente feliz longe dessa cidade.


Mês que vem João vai fazer dezoito anos... Eu volto por aqui pra contar como foi a tal cirurgia pra reconstruir esse pé e como foi a comemoração da maioridade do coisa rica de mãe.
Subverti um pouco os famosos dizeres de Martin Luther King, pra ilustrar o empenho em não deixar que os peitos de ferro se acabem num enferrujado corpo de lata:
Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, REME, mas continue em frente de qualquer jeito.
É tempo de descaotizar, e é tempo de aMAR!




Ju, quando eu crescer quero ser igual a você.
Juliana, que texto mais lindo! Uma declaração de amor à vida, à coragem e ao afeto! 💗💗💗
Delícia ler tuas experiências inspiradas na natureza. Admiro muito tudo em você, mas manter esse espírito cidadão em Brasília, ainda que na linda manhã da mais bela e libertadora posse de um presidente, com tantos limites físicos, é emocionante de ver. Um grande beijo!