Um baobá na savana.
- Juliana Netto
- 10 de out. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 11 de out. de 2024
Caso eu pudesse sintetizar em uma imagem o jeito que eu andava me sentindo, depois desse andaço de tanto diagnóstico, tratamentos, diagnóstico das complicações dos tratamentos, tratamento das complicações, novos diagnósticos e mais outros, e... pára! Segura mais essa! Não, não pára! Cabeça erguida, faz a egípcia, segue sem parar de tocar o bonde porque a vida não espera! Bem, a imagem que eu visualizo é um lugar quente, com solo de poucos amigos, vegetação rasteira, com uma árvore solitária e antiga, tronco forte e galhos tortos resistindo ali. Pensa numa savana. As savanas são biomas adaptados ao clima seco, à estiagem e ao fogo, onde a vegetação cresce em solo pouco fértil. Apesar do ambiente inóspito, nas savanas crescem baobás. Às vezes os baobás estão com o tronco alto em riste e os galhos secos naquela solidão, mas quando chega o bom momento, as folhas tomam conta da copa, ele fica com a cabeleira cheia, verdejante, curtindo a época mais chuvosa, que traz uma fartura relativa que até permite que ele floresça.
Esse ano eu realmente estou determinada a colocar coisas importantes em dia como, por exemplo, tirar férias. Convencer Guga a tirar férias foi um processo quase litigioso. A gente ficou preso num redemoinho pirado de tirar férias pra fazer cirurgia, pra fazer obra em casa, férias até pra viajar pra trabalhar e, o máximo que nós nos permitimos desde 2019, foi uma travessia de barco do Rio a Ilha Grande, com direito a todos os perrengues imagináveis e inimagináveis, que estava e está, muito distante do meu conceito de repouso físico e mental. A prova disso, é que Ernesto somente agora está pronto para fazer a viagem de volta, tamanhos os danos causados por atravessar aquela tempestade com o velho e valente veleirinho, com seu motor de Kombi marinizado, super vintage, da década de 80...
Consegui negociar um passeio em família aqui pela América Latina. Primeiro encontramos uma Buenos Aires longe dos seus tempos de glória. Tirando o vinho, tudo bem caro, supermercados que fizeram lembrar (novamente e sempre ela) a década de 80, com recessão, inflação descontrolada, salário no overnight e as benditas compras de mês, com medo de que em uma semana não desse mais pra colocar comida em casa. Aquele clima triste de Hogwarts cercada pelos dementadores. Não dá pra esperar muito do momento que nossos hermanos estão vivendo, com aquele maluco que se aconselha com um cachorro, como presidente. De BSA fomos a Mendoza, viver um pouco de alienação, muito bem vinda por sinal. Não somos exatamente pessoas de muito luxo, muito menos posses, então visitar uma vinícola e uma olivícola bastaram para satisfazer nossa vontade de posar de gourmets.
O ápice para mim, foi ir ao parque do Aconcágua. A imponência das montanhas e aquela força da natureza, me deram uma energia incrível, que vinho nenhum é capaz de entregar. O AirBnB de Mendoza tinha um jardim, gelado para um carvalho mas bem bonito, com uma parrilha a lenha enorme no fundo. Óbvio que foi a parte que meu marido mais amou. Comprar carne e vinho tinto, passar horas esperando a carne assar na lenha até a gente quase perder a fome e desistir de jantar. Eu, que até a viagem ainda era uma vegetariana convicta, resolvi temporariamente abrir mão dessa "religião" pelo bem da simplificação da vida. Tudo muito complicado pra ainda ficar preparando dois pratos ou buscando restaurantes que contemplassem a carnívoros e vegetarianos. Funcionou por anos, mas chegou a hora de deixar de lado, por um tempo, essa minha culpa pela dívida dos humanos com o meio ambiente e com o sofrimento animal. A única urgência no momento, é simplificar a vida. A minha e a de quem convive comigo.
Seguindo no low profile, pegamos um ônibus de linha, que cruza os Andes de Mendoza a Santiago, parando apenas na Alfândega Chilena. Busão super confortável, cada um numa poltrona grandona e sem vizinho, no janelāo, com aquela visão linda. Não tem foto que consiga transmitir o que os olhos enxergam pessoalmente durante essa travessia. Bagagem modesta, mas uma mala com doce de leite (a segunda coisa realmente barata por lá), balsâmico e os vinhos que sobraram depois dos jantares em família. Na aduana, os funcionários regularmente esvaziam os ônibus, tiram todas as malas e, obviamente, nesse processo, a única mala que sumiu foi a minha mala dos doces e vinhos! A essa altura, eu já estava com a mão nas cadeiras, levantando o tom de voz e perguntando quem ia dar conta da minha malinha da felicidade! Eu não contei, mas tinha uma excursão de idosos, na casa dos 80+, no nosso ônibus. Eu logo apelidei o grupo de turma do Hotel Marigold (Maggie Smith, desce aqui com a Judi Dench e me perdoem por ser politicamente incorreta). Pra quem ainda não viu, eu recomendo o filme, sou fã e bem queria passar uma temporada lá https://youtu.be/XWG6bGJ4QPw?si=OaLILCC8Y81siVJH Voltando à maleta sumida, eu fiquei lá na melhor versão Juliana Netto, tomando satisfação com o motorista, com aquele queixo pra cima que vocês conhecem. Guga já querendo registrar ocorrência na alfândega e aí a turma Hotel Marigold comecou a dar defeito. Estavam impacientes com o atraso, ficavam me mostrando mil malas e mochilas dizendo que eram a minha valise da felicidade. Um senhor ficou cismado que o movimento ia fazer com que a mala dele ficasse esquecida no pátio. O motorista se enfiou de quatro no bagageiro e o senhor Marigold enfiou a mala na retaguarda dele (meteu a mala na bunda do coitado, não tem como descrever melhor). Aí o motorista surtou com o coroa e, de repente, a maleta apareceu. Havia sido esquecida pelos fiscais e nunca desceu do ônibus pra passar pelo raio X. Eu fiquei plena, todos se acalmaram e seguimos viagem. Ainda no caminho, descendo Los Caracoles, que é a parte mais sinusosa do camiho pra Santiago, eu quis fazer um xixi. O motorista me viu um tempão parada no corredor e saiu pra saber porque eu estava ali há tanto tempo. Nem pensou duas vezes e esmurrou a porta do toalete, ordenando que a criatura se despachasse logo do reservado. So-cor-ro, Deus! Saiu de lá de dentro uma tiazinha do Derby versão Marigold, que devia estar enjoada que só ela, com carinha de quem estava em outra dimensão. Que dó.
A rodoviária do Chile deixa aquela historinha de paraíso da beleza e do caos carioca, no chinelo. Lado a lado, uma loja de produtos cristãos divide a vitrine com uma sex shop, com seus coloridos vibradores. "Vibrando com Jesus!", eu viajava olhando para o improvável cenário, enquanto tentávamos achar um jeito de sair dali daquela chapa quente, muito quente. Apesar de estar na capa de um livro, logo ali na vitrine, Jesus não mandou um Uber pra gente. O enviado foi um taxista doido de pedra, num carro velho e fedendo a cigarro, com alguns dentes faltando na boca mas falando mal dos imigrantes como se ele próprio fosse uma espécie de ariano latino, com muitas posses e muito ouro. A crise humanitária cria tipos exóticos e quase melancólicos, de tão patéticos... Quando o carro chegou na rua onde ficaríamos, ele deu uma grande risada e anunciou que a gente ia ficar na rua dos venezuelanos e dos haitianos. Deu uma risada maior ainda quando disse que pelo menos estávamos perto da delegacia dos estrangeiros. Pai amado! Explicando a situação: eu tentei não ser a controladora da família e deixei Guga e João reservarem o AirBnB de Santiago. Não tô aqui pra falar "eu avisei" nem semear a discórdia, mas não passamos nem uma hora no apartamento que a dupla escolheu. Foi o tempo pra eu achar um lugar confortável e seguro, numa rua agradável, bem longe da delegacia dos estrangeiros, onde a gente podia entrar e sair com tranquilidade e andar a pé a qualquer momento do dia ou da noite. Para dicas de onde não se hospedar em Santiago, estou à disposição.
Superado o primeiro impacto, Santiago foi a pérola das férias. Sobre as casas do Neruda, experiência revolucionária. Em Isla Negra, a gente sente a presença dele com uma força quase sobrenatural. Transformador! Neruda e Matilde cuidavam das casas como se cuida de uma pessoa. Casas carregam história, casas são vivas, cheias de emoção, de cores, de riso e de choro. As paredes são impregnadas da pungência e do vigor dos momentos de festa e celebração, dos momentos de muita ou nenhuma sobriedade, das angústias dos momentos de crise pessoais e momentos históricos, também da melancolia da doença e do medo da finitude dos seus habitantes. Assim também é a casa 11 da vila do Ipiranga. Já foi a casa amarela, hoje é a casa azul quase Frida, com terraço cor de beterraba. Quem a viu há dois anos, não tem ideia do que é hoje. É um produto de amor, de sonhos que se sonha junto, da vontade de ser o melhor lugar possível pra nossa pequena família biológica e, também, pra nossa imensa família de coração, essa que a gente teve a oportunidade e a honra de poder de escolher. Que privilégio a vida nos deu!
Voltei das férias mais resolvida ainda a me livrar do desconforto físico das próteses deslocadas, mas muito mais vontade de me livrar da aberração estética em que havia se transformado meu tórax nos últimos anos. Eu era prisioneira daquele corpo e daquele tórax deformado, que me lembrava vinte e quatro horas por dia tudo o que eu passei. Tava na hora de virar essa página. De poder colocar a roupa que eu quisesse, de tomar banho sem olhar para as marcas amargas de um período tão difícil. No caminho de simplificar a vida, não estava em condições de fazer outra cirurgia em essepê. Não se encaixava no nosso infinito particular de 2024, já tão caótico, um procedimento fora do errejota. Dr. Szymanski, o meu querido e insubstituível Dr. XY, me indicou a Dra Mayra Joan. Amigos, quando é pra ser, não tem quem segure. Autorização rápida, sem questionamentos. Acho que não tem plano de saúde que queira segurar a onda de barrar uma cirurgia com tanta evidência da sua necessidade.
Sexta passada, me internei na hora do almoço no Samaritano de Botafogo. Não era essepê, eu estava a dez minutos de casa. Amém, aleluia, saravá, axé, Insha'Allah! Até aquele momento da internação, trabalhei o que pude pra deixar a vida o mais próxima do não dever, nem pra ninguém mas principalmente não dever pra mim. Não fui capaz de finalizar tudo que eu queria, mas fui plena, na vibe de que fiz o melhor que a minha vidinha doida permitiu.
O que se segue já relatei em outras oportunidades. Não pode deitar de lado, não pode deitar de bruços. Não pode tirar o sutiã de compressão vinte e quatro horas por dia, os drenos machucam, a carne sangra de pressão. Não pode tomar banho de chuveiro, lavar o cabelo só no salão. Quatro dias/noites catrevosos...
Quarta-feira, dia 09 de outubro, cinco dias de pós operatório. Acordei inconformada com os últimos dias e noites. Todo mundo fala pra eu pegar leve porque eu acabei de operar... Só que foi tanto tempo dormente, que eu tenho sede de vida. Sede de ter função, de abraçar, de dançar, de cantar, de ver gente, de amar, de realizar! Então me arrumei como se fosse trabalhar. Banho do jeito que dava, roupa, colar vermelho preferido, perfume bom, sandália rasteira mas digna. Saí da cama. Passei o dia na poltrona chiquérrima que meu amigo Marcelo Sobral me deu de presente. Escutei um milhão de músicas que me dizem tudo ao coração. Li, li muito e li de novo. Aí veio, depois de mais de um ano, a vontade de escrever. Botar pra fora um pouco do tanto que andei experimentando e sentindo. Foi bom. Gostei. Cheguei ao fim. Na pegada quase gospel de levanta-te e anda. Sou eu, imperfeita mas intensa, cheia de entrega, do jeito que dá. Tropeçando, catando cavaca, chorando, rindo de satisfação, pelo gozo de ser quem eu consegui ser. Por existir e ainda viver com tanta plenitude.
Nesse meio tempo de processar tanta coisa, inclusive processar ser essa mulher preta existindo contra todas as expectativas, que se viu paralisada por anos, mas que despertou do transe. Acordei em tempo de pensar que o que eu faço não é só por mim, mas por todas as mulheres pretas atropeladas, pelo câncer e por tantas formas de violência, que virão depois de mim.
No minuto em que fecho essa longa crônica, toca Emicida no Spotify, nas caixas de som da cozinha. A Pablo Vittar, precisa, dispara:
"Permita que eu fale
Não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes
Não, melhor, figurantes
Que nem deviam tá aqui".
Agora, eu sou doçura e esperança.
Com amor,
Juliana.




Por favor, continue falando.
Adoro seus textos.
Um abraço fraterno.
Daniella Mancino (assinei meu nome pois não sei se ele vai aparecer no comentário)
PS: minha referência semelhante ao seu Hotel Marigold é Cocoon. Outro filme incrível.
Viva você, Juliana!!!!! 🤩🥳🥰💐💜👏🏻🎊💝🎊🌸🌺🥳🌻