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As definições de "I will survive" foram atualizadas.

  • Foto do escritor: Juliana Netto
    Juliana Netto
  • 16 de abr. de 2022
  • 9 min de leitura

Atualizado: 19 de abr. de 2022

Final de ano é sempre aquela época que todo mundo fica cheio de esperança de que após as badaladas da meia noite do dia trinta e um de dezembro, o Peter Pan vai jogar pó de pirlimpimpim em cima da humanidade e, quando o dia amanhecer, nossa vida será melhor. Depois da terceira taça então, é aquela onda de amor e promessas de mudar de vida. Todo mundo "rico" e amando até os desafetos. Acho super válido, sabe? Porque tem que ter um momento pra gente fazer uma pausa e voltar a acreditar em tempos melhores. Ano passado eu tinha passado por quatro cirurgias e cheguei ao final do ano ainda proibida de correr e nadar. Pedalar, só no rolo, assistindo alguma bobagem que ajudasse o tempo a passar mais rápido. Eu só queria que o dia quinze de janeiro chegasse, pra poder começar a treinar pro ironman. Já começava daí que o projeto era meio insanidade. Eu vinha de três anos de tiro porrada e bomba, um corpo claudicante, quase um ano inteiro sem nadar, dois meses parada de corrida e ciclismo na rua. Começar do zero, com quatro meses e meio pra ficar em condições de fazer a prova, contando que nada desse errado. Primeiro treino na estrada foi um desespero. Descondicionada, nauseada, sofrendo com o corpo que inchou que nem uma pipa, um horror. Esse verão foi capirótico. O "morninho" soprou seu bafo com força aqui no Hell de Janeiro. Eu e Guga passamos a sair umas quatro e pouco da manhã aos sábados, pra dirigir até Parada Modelo e começar o treino com as primeiras luzes do dia, tentando fugir do calor. Isso aqui é Ridejanêro, mermão. O buraco é mais embaixo. Nove da manhã o sol já queimava o couro, por vezes esquentava tanto o celular no bolso da camisa de ciclismo, que parecia que estavam me marcando com ferro quente, que nem fazem com o gado. No pé da serra, depois do portal de Guapimirim, tem a venda da Dona Sônia. Dona Sônia é uma personagem importantíssima pra quem treina naquela estrada. É lá que a gente para pra tomar a Coca Cola sagrada do meio do treino. Aquela latinha com o sangue negro do capitalismo, contém uma seiva milagrosa, cheia de açúcar e cafeína, que levanta até defunto, principalmente atleta "quebrado" no meio da estrada. Lá a gente também reabastece a água, o Gatorade, come aquele pão amassado ou a batata cozida que carrega na camisa e, se estiver muito quente, até toma banho numa ducha com água fresca que vem de algum rio da área. Em um final de semana, fomos no domingo, ao invés de sábado, e Dona Sônia não estava com a venda aberta. Domingo é dia santo, pra ficar com a família, descansar e ir à igreja. Não pra gente. Pra gente, é dia de treino. Fazia tanto calor, mas tanto calor, que toda a água que eu carregava acabou antes de terminar a segunda volta. Os lábios colando nos dentes, a língua grudada no céu da boca. Depois que eu já tinha virado um pedaço de jabá em cima de duas rodas, entrei num posto de gasolina e comprei Coca Cola, Gatorade, água...mas a Inês já era morta, pendurada no pé de couve. Eu já não tinha forças pra nada. As mitocôndrias tinham batido o motor, fundido o cabeçote. Pra piorar, um vento que fazia parecer que eu estava em um point de kite surf.


Na estrada acontece de tudo, até o pneu da bike rasgar de não dar pra consertar e não ter como continuar, como aconteceu num dia miseravelmente quente, em que eu estava no ápice do edema, uma Peppa Piggy afro brasileirona, e só tinha pedalado cem dos cento e quarenta quilômetros previstos. A cena era eu, em Magé, no acostamento daquela estrada em chamas, de capacete na mão, caminhando de sapatilha, empurrando a bicicleta em direção ao posto onde a gente tinha estacionado. Quase vinte quilômetros me separavam do carro. Coméquipódi, meodeos!? Liguei pro Guga, que não tinha parado na Dona Sônia, por isso estava alguns quilômetros na minha frente. Segui empurrando a bike. Aquela sensação de que um acidente nuclear tinha acontecido em Magé e a radiação emanava do asfalto, por isso eu poderia cair dura e chamuscada no chão a qualquer momento. Um tempo depois, que eu não sei nem dimensionar porque a essa altura já não raciocinava direito, Guga ligou dizendo pra eu esperar do outro lado da estrada, que ele tava indo me resgatar. Atravessei até o canteiro que separa as pistas de subida e descida. Uma espécie de vala cheia de grama, com uma grade de metal no meio. Eu com os tacos das sapatilhas cheios de lama e grama, joguei a bike nas costas e pulei a grade. Quem vê a foto da chegada da prova, não tem idéia do que a gente passa pra estar ali. E as semanas foram passando, os treinos de tudo rolando, mas uma coisa estava atrapalhando demais! O edema (vulgo inchaço) no corpo todo, que à medida que se sucediam dias fervendo em cima de dias insuportáveis de quentes, só fazia piorar. Eu treinando pra caramba, comendo sem exageros, mas toda inchada. A coisa foi se agravando, apesar de fazer drenagem linfática, usar meias e braçadeiras de compressão, ar condicionado o máximo de tempo possível, e nada de melhorar. Se eu encostasse em qualquer coisa, o corpo ficava marcado. Da cabeça aos pés. Na madrugada de um sábado de treino, me vestindo no closet e me sentindo uma bexiga de festa cheia d'água, resolvi me pesar. As lágrimas desceram ao mensurar o peso extra, que equivalia à quantidade de líquido visivelmente fora do lugar. Naquele dia, eu percebi que não tinha mais condições de tomar aquele tamoxifeno, o tal bloqueador hormonal, mas continuei com ele até a próxima consulta. Vinte e nove de março, consulta com a Dra. XX. Fui super animada esperando ela efetivar a troca do tamoxifeno por algum inibidor de aromatase, uma outra família de remédios anti-estrogênio. Ela agora tem um assistente, o Dr. GB, que atende junto com ela e que eu só conhecia por whatsapp. Ele é um amorzinho, mas confesso que achei super esquisito ter que começar a descrever meu calvário pra um quase desconhecido, ainda acompanhado de uma especializanda, essa então, eu nunca tinha visto na vida. Lembrei imediatamente há quantos anos eu atendo com residentes e especializandos comigo na sala. Sempre explico pros pacientes que é um hospital escola, que é importante pra formação de novos profissionais. Alguns reclamam quando passam a ser atendidos só pelos residentes, mesmo que eu esteja sempre na área e presente pra discutir os casos mais difíceis. Dessa vez era comigo e, mais uma vez, estar na posição de paciente, me deu uma lição de vida e mais empatia ainda com os meus pacientes. Quando Dra. XX chegou no consultório, eu já tinha reclamado os tubos do tamoxifeno pro Dr. GB, coitado. Eu já tinha me queixado antes com ela, então não era grande novidade, já era esperada a troca da medicação. Depois de cuidadosamente me examinar, ela saiu da sala e voltou com uma caixa de amostra grátis de Anastrazol, pra eu tomar no lugar do TamoxiDemo. Saí de lá com o combinado de dar notícias depois de umas duas ou três semanas, pra saber se eu tinha me adaptado ou se voltaríamos pro TamoxiDemo. Provavelmente ela já sabia que podia dar ruim, então, ao invés de bater o martelo da troca, ficou como teste. Eu tava tão esperançosa e feliz de não ter mais que tomar o troço que incha, que não conseguia imaginar que a bolinha nova fosse me fazer mal maior. Dois dias depois, no final da natação, passei a sentir uma dor nos braços que me incomodou muito, principalmente à noite, quando os dedos das mãos também reclamaram. "Isso é um período de adaptação, vai passar, o importante é não estar inchada", eu repetia pra mim mesma. Nessa mesma semana, fui pra Essepê, pra uma consulta com o Dr. F. Ele perguntou como estava da parte oncológica e eu contei que tinha trocado a medicação. Ele mandou na lata que achava que eu ia voltar pra antiga, principalmente por gostar de fazer esportes. Eu continuei achando que nada poderia ser pior do que aquele suplício de ficar toda inchada. Da parte dele, anunciou que provavelmente vai ter mais uma troca de prótese e uma lanternagem na carroceria. Pai amado... Okay, okay... Combinei de fazer um exame de imagem pra ver se tinha seroma (líquido em volta da prótese) que precisasse ser puncionado, mas cirurgia mesmo, só depois de junho, pra não atrapalhar os treinos e dar tempo de me capitalizar novamente, afinal, vai ser a sétima cirurgia em pouco mais de dois anos. Se eu fosse uma empresa, já teria decretado falência. Poucos dias depois de começar o tal anastrazol, comecei a ter dificuldade para correr, sentindo as pernas fracas e doloridas. Uma semana depois, numa segunda, fui ao Aterro correr. Não consegui passar de três quilômetros. Fisicamente, a sensação era a mesma de quando eu estava fazendo quimioterapia e tentava correr. Aquela briga de um corpo exausto com uma cabeça dura. Tinha alguma coisa muito errada. Eu desinchei rápido, e nessa semana foram-se quatro dos quilos/litros que estavam fora do lugar, o que me deixou tão satisfeita, que eu demorei a perceber o quanto o novo estrogênio killer do capiroto estava me afetando. Eu tava sentindo uma bad, mas também não localizava o motivo. Até que... Quarta feira, nove dias depois de começar o troço, acordei com vontade de chorar. Não sabia porque. A vontade (e urgência) de treinar, era imensa. Tentei ir ao Aterro correr. Chegando lá, tive um ataque de pânico. Pânico de chorar em frente ao mar, uma das coisas que eu mais amo na vida. Voltei pra casa naquela confusão de ansiedade, tristeza e medo, difícil até pra atravessar a rua. Em casa, entre lágrimas e soluços, consegui preencher uma receita controlada e pedi na farmácia um SOS pra dar uma arrumada naquele caos. À tarde, um pouco mais centrada, fiz aquele PubMed maroto e descobri que o troço pode dar alterações de humor em até dezenove por cento das pacientes. Zoada do jeito que sou, não ia ficar fora das estatísticas, né nom? Eu tinha preferido não ler a bula pra não me deixar influenciar, mas diante daquele quadro, não restou alternativa, a Juliana médica teve que entrar no rolê. Liguei pro Dr. M, meu compa e amigo psiquiatra, contei o que se passava. Ele confirmou que tudo indicava que era relacionado ao início da medicação. Eu expliquei que não conseguia conceber voltar pro TamoxiDemo e queria dar um crédito ao Infernozol, pra ver se me adaptava. Ele ajustou a dose dos paranauê e eu paguei pra ver. Rapidamente a alma começou a voltar pro corpo, o problema é que o corpo tava um bagaço. Só o pó! Fiquei tão perturbada, que me dei conta de que não tava legal pra dirigir, tava confundindo a alavanca da seta com a do limpador de parabrisa. Tive medo de estar com Alzheimer, mas essa confusão passou à medida que o Infernozol começou a sair do meu corpo. No meio desse corre, rolou aquele chute no morto que já tá caído, e eu tive a milésima segunda infecção urinária paridora de ouriço. Olha... Haja resiliência! Do jeito que eu estava me arrastando, tudo indicava que eu não conseguiria mais fazer a prova. Depois de meses de muito investimento de tempo, sofrimento e dedicação aos treinos e, acima de tudo, um investimento emocional em alguma coisa que eu queria muito concretizar, tudo indo ralo abaixo. Eu já completei essa prova antes desse tratamento (que tem sido tipo uma longa e dolorosa queda rolando de um barranco cheio de cactus bem cheios de espinhos), e sei o quanto ela me realiza e me completa. Eu não ia morrer na praia agora. Ah, não ia mesmo! De jeito ou maneira! Tomei coragem e escrevi pra Dra XX, pedindo pra tirar umas "férias" do Infernozol. A resposta esperada: não existem férias em oncologia. Meu coração falou mais forte, eu expliquei o quanto aquilo significava pra mim. Ela ficou com pena, e me autorizou a parar o troço até a prova. Deixou claro que era assumir algum risco, mas que pelo tempo, não deveria ser muito alto. Óbvio que, racionalmente, por ela eu não teria parado, e ela está correta, admito. Só que gente quer ficar viva, mas a gente quer estar viva e feliz, realizada. Plena, plena, eu não digo, porque por alguns anos vou ter que tomar alguma pillula do capiroto e ainda não ganhei na mega sena. Logo, sigo claudicante e dura. Achei que parando de tomar o comprimido, magicamente eu voltaria ao status anterior. Tolinha... A semana que se seguiu foi dureza. Ainda um bagaço. Sentia dor nos braços pra pentear os cabelos ou lavar um copo, esse era o nível de sofrimento. Ontem consegui correr dez quilômetros. Uma parada pra comprar água, outra quando só faltavam novecentos metros pra terminar, era só fazer o retorno em direção à passarela mais próxima da minha casa. Então por que eu parei, você pode me perguntar. Eu parei porque fiquei deslumbrada de estar novamente ali, de frente pro mar que eu amo, conseguindo correr, ainda que mais lenta do que gostaria, mas esse é meu novo corpo e é com as limitações dele que eu vou seguir fazendo o que gosto. Eu parei de felicidade. Fiquei uns bons minutos olhando o mar de ressaca batendo nas pedras da quase sempre calma baía de Guanabara, admirando o Pão de Açúcar e sentindo como era bom não estar sob efeito do Infernozol.



Legenda da foto: A cara plena de quem parece até que não tem boletos pra pagar. Eu não vou abandonar o tratamento, porque não sou nem louca. Só quero fechar esse ciclo. Não há garantias de sucesso, muita coisa pode acontecer numa prova de duzentos e vinte e seis quilômetros que pode durar dezessete horas, mas eu vou dar tudo que eu puder pra chegar bem pra foto. Desculpem se me alonguei demais, mas não se resume quatro meses tão intensos em poucas linhas. Eu sei que abracei o capeta nas últimas semanas, mas com certeza, as definições de "I will survive" foram atualizadas. Vamo que vamo!


 
 
 

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