top of page

Barracos da quarentena e os novos braseiros da fênix

  • Foto do escritor: Juliana Netto
    Juliana Netto
  • 18 de mai. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 18 de mai. de 2020

Eu, assim como quase todo ser humano que tem o privilégio de ter uma casa pra se abrigar, estou trancada nela há mais de dois meses. No caso, se a gente contar todo o processo da licença pro tratamento, eu tô meio quarentenada há mais de um ano, com eventuais saídas para ir a consultas médicas, laboratórios, aquelas arriscadas que eu dava no brejo e, quando estava menos surrada pelo tratamento, às quintas e domingos na São Salvador, sempre carregando a minha cadeira de praça. Só que, por um ano, a semi quarentena era "particular", já que os vizinhos continuavam a levar suas vidas normalmente, aparentemente com a psiquê nas CNTPs (condições normais de temperatura e pressão), mesmo que essas não fossem livres de eventuais bizarrices.


Deu-se que a quarentena, como era previsível, começou a mexer com o ânimo do pessoal aqui da vila. Com o presida fazendo uma sandice por dia, o povo da URSAL engatou o panelaço diário. A vizinha da frente, se sentindo afrontada, passou a colocar pra tocar várias versões do hino nacional (teve até a versão da Fafá de Belém), sempre no último volume. Até que dia desses, já claramente abaladíssima pelo efeito quarentena, a moça saiu de casa aos berros e chamou a polícia pra impedir as paneladas. Aproveitando o ensejo, uma senhora que também é simpatizante do presida, apareceu pálida e trêmula na varanda, com cara de quem podia fazer a passagem a qualquer momento, alegando que tinha desenvolvido um transtorno de stress pré panelaço (vamos chamar de TSPP), e que todo dia, pouco antes das 20:30 ela sofria de graves crises ansiedade. Fizeram uma grande aglomeração regada a ameaças e palavras que não posso transcrever aqui. Eu de boas, assistindo a tudo do meu camarote, e passa o síndico falando pra eu ir lá ajudar na confusão. Guga teve um siricutico e da janela falou grosso com o homem, dizendo que eu era duplamente grupo de risco, e que ele devia era estar impedindo aglomeração. A polícia chegou, obviamente achou que era todo mundo doido e que não tinha nenhum motivo pra estar ali. O síndico tentou fazer uma média pra apaziguar os ânimos, e pediu que batêssemos panela mais baixo. Pronto, criado um grupo de Whatsapp "Contra a Censura na Vila". Agora a gente tem um movimento de resistência organizado. A moça do hino nacional desistiu de lutar contra as panelas, e a do recém descrito transtorno pré panelaço, pendurou uma bandeira do Brazeeel na porta de casa e se tranca quando as panelas ameaçam começar a cantar.


Semana passada, eu, convalescente de mais uma infecção respiratória, deitada na minha cama, presenciei mais uma bela demonstração de afeto e relação amigável entre vizinhos. A senhora do TSPP tem uma cadela que faz passeios matinais na vila, sem coleira, pra se exercitar. A danada foi atacar as pernas de uma outra senhora, que gosta muito de mim mas não é exatamente uma pessoal fácil. Começou a gritaria chamando a dona da cachorra de irresponsável, e a resposta da nossa primeira paciente diagnosticada com TSPP, foi de que o animal tinha problemas com o temperamento de algumas pessoas. Pra que essa resposta, minha gentchy? Eu até levantei da cama pra ir assuntar o bate boca, achando que o Dias Gomes, se vivo fosse, bem podia passar uma temporada aqui na Vila do Ypiranga, pra se inspirar pra mais uma novela. Até os cachorros já perceberam que o movimento da vila anda esquisito.



ree


Todo mundo já percebeu que a quarentena é a maior pegadinha da história. Você passa horas no aplicativo tentando fazer as compras, que às vezes levam dias para serem entregues e, quando elas chegam, é um sufoco tão grande pra desinfectar todos os produtos e os sacos plásticos, que a pessoa já fica querendo jogar tudo pro alto e que se dane essa porcaria de vírus. Claro que a razão fala mais alto e, mesmo resmungando, a gente calça as sandálias da humildade e continua a lavação. Cada abobrinha, cada batata, cada tomate. Os ovos eu não tenho estrutura psicológica pra lavar um a um, mas soube de quem o faça. Todas as garrafas de água e refri lavadas na água e sabão. Um varal de sacos plásticos de quarentena... Aliás, descobri que várias pessoas fazem o varal de saco de mercado, não nos sentimos mais solitários nessa. Já disse que Guga instalou até papeleira de papel, estilo hospitalar, né? Pois agora ele também tem um pulverizador pressurizado pra limpar a varanda e os sapatos com cloro. É tipo aqueles que os chineses usam pra desinfetar o metrô, sacam? Ele fez aniversário sábado, e vou encomendar um aspirador de pó novo pra ele. Acho que vai fazer sucesso.


ree


João está amando a vida de quarentena. Cozinha, pinta e está fazendo um curso de história do cinema com a ajuda de um livro e documentários que indicam filmes mudos de mais de três horas de duração. Tá seguindo o roteiro na maior obsessão. Eu escuto as explicações sobre os movimentos do cinema russo e do expressionismo alemão, mas confesso que na atual situação, ando preferindo coisas mais leves, tipo o documentário da turnê da Michelle Obama. Papéis trocados, agora sou eu a alienada da casa. Já tive meus tempos de muito cinema cabeça nas salinhas do Estação Botafogo, mas a vida já tá séria demais pra eu assistir Akira Kurosawa no final da tarde, como ele está fazendo agora.



ree


ree

Eu sigo nas excepcionalidades dessa vida de paciente. Mais uma vez fui parar na Fiocruz, com febre e tosse, e a tomografia mostrou uma pneumonite pela radiação. Dra. L disse que estava bem triste, porque era uma complicação extremamente rara para a dose de radiação que eu recebi. A minha resposta pra isso é: trabalho com raridades... Pelo jeito, se está descrito como evento adverso, é só esperar que eu vou ter o prazer de experimentar. Tô de parabéns, uma salva de palmas pra mim. De novo aquela cara de Peppa Pig por conta do corticóide, tomando meu antibiótico, mas já conseguindo levantar pra arriscar alguma atividade física diária.


Quando soube que Crivella fecharia o comércio no dia seguinte, fiz o Guga correr na Casa e Vídeo e comprar uma mega piscina pra ajudar na quarentena. Encomendei um cinto de natação estacionária, me prendo na grade do terraço e fico lá mexendo o corpitcho, nem que seja por 15 minutinhos. A água anda gelada e eu tenho a esquisitice de só me sentir bem pra exercícios à noite. Atribuo isso ao fato do corticoide já ter cumprido seu papel e eu estar com os brônquios mais dilatados. Adotei essas braçadas como fisioterapia respiratória e prevenção do linfedema pós esvaziamento axilar. Coloco uma roupa de neoprene, dessas de surfe, touca, óculos, pego meu pullboy e vamos que vamos. Dia desses flagrei um vizinho me olhando meio espantado, nadando às nove da noite, na chuva. Ele que lute por uma piscina Toni pra ele e pare de me espiar. É a minha fisioterapia, e também a minha terapia. Nessa mesma vibe, fiz mil parcelinhas pra comprar uma esteira nova, porque a minha foi pro brejo depois de sete anos de muitos serviços prestados à família. Foi só a esteira chegar pra eu abrir o quadro de pneumonite e penumonia... Mais um pequeno braseiro da fênix pra conta. A gente enverga mas não quebra.



ree


Há duas semanas, perdemos um grande médico, colega e amigo, pra Covid-19. Maurício Naoto Saheki, 41 anos, infectologista. Foi um dos dias mais tristes da vida de muitos que tiveram o prazer de conviver com ele... Quero fechar com uma poesia que ele enviou para uma amiga, quando já se sabia doente, mas ainda em casa, antes da internação da qual não teve a chance de retornar.


"Life is mysterious and full of surprises.


Sometimes life hits us hard.


All we can do is welcome the moment to the best of our capacities, do our absolute best with what we have.


And if each day, we're fully present and engaged...


if each day, we add a little bit of creativity, a little bit of love to everything we do


-that's a great way to live."


"A vida é misteriosa e cheia de surpresas.


Às vezes a vida nos bate forte.


Tudo o que podemos fazer é acolher o momento da melhor maneira possível, fazer o melhor possível com o que temos.


E se a cada dia, estamos totalmente presentes e engajados ...


Se a cada dia adicionarmos um pouco de criatividade, um pouco de amor a tudo o que fazemos


Essa é uma ótima maneira de viver."








 
 
 

3 comentários


Juliana Netto
Juliana Netto
22 de set. de 2020

Estela, é um prazer tê-la por aqui. A gente corta um dobrado, né? Não é fácil mas vamos superando cada obstáculo. Conte comigo. Grande abraço, Juliana.

Curtir

estelasalustio
22 de set. de 2020

Setenta anos argentina naturalizada brasileira , cancer 12/07/2019

Quimio,raios na pandemia, e agora tratamento hormonal, hoje o Dr.Eduardo trocou remedio pois os ossos castigados de artrosis não aguentam.

Lindos depoimentos!

Gratidão

Curtir

marceloguedesmorais27
18 de mai. de 2020

❤️❤️❤️

Curtir

©2019 by Peitos de Ferro. Proudly created with Wix.com

  • facebook
  • instagram
bottom of page