Blake is the new black ou: a última braseada na fênix.
- Juliana Netto
- 23 de dez. de 2021
- 9 min de leitura
Depois do procedimento de agosto, passei uma semana em essepê, num apart hotel que tinha uma cozinha toda envidraçada, com uma vista bonita e cheia de verde pra Avenida Vinte e Três de Maio e, na lateral, pro sinistro hospital Sancta Maggiore, da Prevent Senior. Um mês antes do escândalo envolvendo a operadora de saúde do Joseph Mengele estourar, sem saber dos fatos, aquele lugar já me incomodava. Numa noite em que não conseguia dormir, com muita dor no corpo por não poder deitar de lado ou de bruços, passou pela minha cabeça que eu não era a única acordada e com dor. Pensei nas pessoas em casa, algumas com dores crônicas, e pensei nas pessoas internadas naquele prédio. Da varanda, a gente via o movimento dos funcionários, as macas se deslocando e, às vezes, alguma pessoa melancólica, pensando na vida (ou na morte), no hall dos elevadores. Retornamos pro Rio numa longa viagem de carro, eu toda amarrada no espartilho de compressão e na camisa de força, pra manter os peitos mexidos no lugar. Aquele carro lotado das compras na Liberdade, com cogumelos, missô, tofu, gyozas e buns (aqueles pães chineses redondinhos, que a gente cozinha na panela de bambu), uma bike amarrada na traseira e um caiaque no teto. Um dia quente pra burro! Fizemos a clássica parada pro almoço no horripilante Frango Assado. Dessa vez eu tinha levado um lanche vegano no "tapaué', pra não morrer de fome na estrada. Saímos do Frango e não paramos mais, até o Rio. No final da viagem, pra provar que todo castigo é pouco quando a gente tá zoada, o ar do carro parou de funcionar... Ficar sentada tanto tempo, foi a pá de cal. Fazia alguns dias que eu estava com o corpo surrado, completamente sem posição. Cheguei em casa um caco.
De volta ao errejota, depois de um tempo de repouso e fisioterapia, retomei minha rotina na Fiocruz. Negócio de trabalhar, faz um bem danado pra cabeça. Dias e semanas intensos pelas bandas do Manguinho, chegou rápido a nova consulta pré operatória com Dr. F. O procedimento anterior tinha sido sucesso, e eu já estava no ponto pra remover a capa de fibrose e receber as minha próteses novas. Seria a quarta cirurgia do ano, entre a última semana de março e meados de novembro, e a sexta desde o início dessa peleja contra o caroço do capiroto. Saí da consulta meio atordoada, cheia de dúvidas. Vale a pena operar de novo? E se não der certo? Como vai ser parar a vida toda novamente? Depois de tantas cirurgias, a gente já sabe que o pós operatório é chato, conhece as sofrências, sabe o que vai incomodar e também vai aprendendo que nunca dá pra dizer que é a última. Enfim... Fácil nunca é. Aproveitei esse bate e volta em Essepê, e da BP Mirante fui encontrar Lelê, um amigo muito querido, que me levou pra almoçar num boteco arrumadinho perto da Augusta, que tinha uns saleiros de abacaxis, tocava um jazz delícia, servia cerveja de garrafa e um PF vegano de respeito. Peguei um Uber pro aeroporto, com um motorista que era espírita e falou tanta coisa esquisita, que eu concluí que era melhor mesmo fazer a tal cirurgia. Melhor não facilitar com o além. Da consulta, no dia vinte e dois de outubro, até a data programada da cirurgia, dez de novembro, eram apenas dezenove dias. Pouco menos de três semanas. E que três semanas...
Comecei com a milionésima pielonefrite. Desde que eu tomei o quimo-combo modernoso, passei a ter que conviver com essa chatice. Minha gente, o outubro é rosa, rapadura é doce, mas nenhum dos dois é mole não. Na sequencia, sguiram-se uns rolê louco pra conseguir a autorização da cirurgia, que acabou sendo liberada só pro dia onze, com confirmação definitiva apenas na manhã anterior, quando a gente já estava na serra das Araras, a caminho de Essepê.
Nesse meio tempo, tive perícia no Detran. A médica me tratou como se eu fosse morrer na semana seguinte. "Não faz nenhum tipo de esforço, tá? Deixa só eu ver se você consegue segurar o volante". Pai amado... Que constrangimento! Um tempo depois, peguei o documento, com restrições pelo déficit motor incluídas. CNH novinha, válida por dez anos. O que eu fiz? Perdi, na véspera da viagem. Fui refazendo os caminhos e cismei que tinha perdido no Zona Sul da Urca, de manhã cedo. Peguei o carro, andei pela rua, fiz o gerente olhar o vídeo da câmera de segurança pra conferir se eu tinha esquecido no caixa, mas nada de localizar o documento. Perguntei pros policiais, guarda municipal, na banca de jornal... Voltei em casa, participei de uma reunião e depois voltei pra Urca. Nada tirava da minha cabeça que eu tinha perdido lá. Louca da cabeça, peguei o caiaque e fui até o barco onde tínhamos passado a tarde de domingo. Quase anoitecendo e a maluca remando sozinha na baía de Guanabara. Em vão, que fique bem claro, porque não encontrei nada. Parei no Belmonte, comi um pastel de palmito com a Teca, e o garçom chegou a me dar esperança de que tinham entregue o documento lá, mas foi alarme falso Voltei pra casa desconsolada Era tarde, mas subi na bike montada na sala, já que sabia que teria semanas sem poder fazer atividade física (e poucas coisas me deixam tão contrariada quanto isso). Guga acordou no dia seguinte, entrou no carro, e a CNH estava no painel. Diante da constatação de que eu estava dando uma desorientada, passei a trabalhar a cabeça num mantra: "Vamos nos desesperar com calma".
A parte mais estressante desse outubro, foi descobrir que a nossa matriarca tinha uma lesão no osso, aparentemente desproporcional à queda que ela tinha levado quatro meses antes, quando inventou de cortar as unhas do gato e levou um plot twist invertido da fera, caindo em cima do braço do sofá. Fui pra Essepê arrastando o peso desse suspense dos resultados dos exames dela. Haja coração, meu Brazeeeel!
Matando um leão a cada quinze minutos, chegamos ao dia da viagem. Doguinhos despachados pra casa da Heleninha, bike do Guga atrás do carro, e toca o bonde, cocheiro. Voltamos pro apê vizinho da Prevent Senior e no dia seguinte pela manhã, fui internada na BP. Dr. Hollywood, ops, Dr. F, tirou uma placa de fibrose do meu peitoral. Parecia um pedaço de bife de acém da pior qualidade, daqueles bem duros e fibrosos, esquecido numa bandeja de isopor no canto de uma triste ilha de carnes do Supermercado Mundial. Eu imaginava que a coisa estivesse feia, mas não tanto. Tive alta dia seguinte, com dois drenos pendurados, usando cinta e sutiã de compressão. Eu estava me sentindo bem pimpona, provavelmente porque ainda tinha morfina circulando no corpo, mas sábado veio o choque de realidade. Muitas horas deitada de barriga pra cima, sem poder deitar de lado nem de bruços novamente, pela quarta vez só nesse ano. O corpo sentiu logo de cara. Quarentena e oito horas depois do procedimento, eu já estava chorando de dor lombar. Enchemos o colchão d'agua, coisa que sempre me deixa bem aborrecida, mas eu não estava em condições de escolher muito. Na terra do Doriana, tá rolando uma moda de cadeira de praia. Boa parte dos bares e espaços descolados da cidade, são equipados com cadeiras de praia. Eu percebi que aquilo seria uma boa posição pra sentar e aliviar a pressão no corpo, então Guga e João compraram uma cadeira de camping na Decathlon, pra eu usar na sala do apartamento e também carregar pra rua. Foi um upgrade na vida. Eu jogava uma blusa de botão pra disfarçar a roupa de compressão e os drenos, e conseguia acompanhar eles nos rolês pela cidade. Se cansasse, era abrir a cadeira e sentar. No Ibirapuera, na porta da Bienal, no ponto de ônibus esperando o Uber, no restô descolado com mesas coletivas, no Beco do Batman, só dava eu, minha cadeira, e os drenos de Blake. Como me disse o Matheus, blake is the new black, amigos. Libertador!
Registrei alguns momentos dos rolês do Blake com a cadeira.







De lá de São Paulo, continuei acompanhando os resultados dos exames da matriarca, que a Dra XX e o Dr G, que agora é assistente dela, me passavam pelo telefone. Pra não me alongar muito, no osso, foi uma fratura mesmo, mas toda essa investigação desencadeada pela queda, levou à descoberta de um pequeno Ca de mama, bem inicial. Atiramos no que vimos, acertamos no que no que não vimos. Tudo está correndo bem, o Dr XY vai cuidar dela junto com a Dra XX, e isso me dá uma paz danada.
Voltei pro Rio ainda com os drenos, sem poder tomar aquele banho bom de verdade, com a água batendo da cabeça aos pés. Eles foram tirados pelo Dr XY, numa consulta pra lá de surreal, em que ele atendeu mãe e filha, ambas com história de câncer de mama. Aliás, é a terceira geração. Minha avó, minha mãe, eu e minha prima. Obviamente ele me pediu pra repetir o o aconselhamento genético. Depois dessa consulta, tomei o primeiro banho de verdade, depois de duas semanas. Pequenas alegrias, grandes conquistas.
Precisei voltar pra essepê pra consulta de um mês pós cirurgia. Gustavo estaria dando aula, então levei João, meu parceiro no crime. Pegamos um ônibus da Buser uma da manhã, na Praia Vermelha. Ônibus novinho, confortável, preço bom, não tive muita dúvida de que valia mais a pena do que gastar milhares de reais pra um bate e volta de menos de vinte e quatro horas. Parei de prestar atenção no caminho, logo depois que o ônibus imenso parou de bater na copa das árvores da Urca, o que fazia um barulhão. Cochilei rápido e de repente me dei conta de que ele estava virando ao lado do viaduto, ali na Viva Cazuza, e ia entrar na minha rua. O túnel Santa Barbara estava fechado e o motorista resolveu ir pela praia do Flamengo. Mas minha gente! Tava na cara que aquela espaçonave não ia fazer a curva naquela rua estreita. E não deu outra... O ônibus ficou agarrado e um dos motoristas desceu pra ajudar o outro a manobrar. Eu não sabia se ria ou pedia pra descer e voltar pra minha casa, que estava a cem metros dali onde o ônibus entalou. O cabra foi e voltou mil vezes, até que resolveu partir pra ignorância, meteu a roda do busão na calçada, quase arrancou o poste da placa com o nome da rua, e desencalacrou a gente dali. Quando eu vi que ele ia passar pela São Salvador, quase pedi pra dar uma paradinha, pra eu pegar uma Beck's no Seu Dodô. Dali pra diante, o balanço do ônibus me ninou, e eu dormi que nem uma pedra até chegar em São Paulo.
Tomamos café da manhã num restaurante vegano perto da Paulista, onde a dona, uma japonesa falante, parou pra dar muitos conselhos de vida pro João. Dali, fomos caminhando até a BP. Consulta com Dr Hollywood foi um sucesso. Liberada pra mexer os braços, tirar a roupa de compressão (ô, glória!), dormir de lado, fazer musculação e pedalar (mas só em casa, rua só mês que vem). Ele ficou muito satisfeito com o resultado da cirurgia e eu, mais ainda. Só hoje eu me dou conta de como estava ruim viver daquele jeito, sem conseguir respirar direito, com toda aquela restrição. Dr. F é um anjo, e eu me acho uma sortuda de tê-lo na minha vida.
Da consulta, fomos ao MIS, ver a exposição sobre a vida da Rita Lee. Ah, como eu amo! Eu tinha reservado um quarto num hostel em Pinheiros, pra gente poder descansar e dormir um pouco antes de pegar o ônibus de volta, às onze da noite. Saímos caminhando pelos Jardins, até Pinheiros. Nos Jardins, não tem gente andando na rua e passam alguns carros importados que a gente nem sabe o nome da marca... Quando avistamos novamente pessoas andando na rua, bares e restaurantes, tivemos a confortável certeza de saber que estávamos na região de Vila Madalena/Pinheiros. Dormimos um pouco à tarde, exaustos da viagem e das caminhadas por essepê. Jantamos lamen no Hirá Ramen Izakaya, restaurante mara pra quem gosta de comida oriental quente. Passamos no hostel pra pegar a mochila, partir pro terminal e pegar o ônibus pra casa. Dezembro, todo mundo comemorando que chegou vivo ao final dessa bagaça, décimo terceiro caindo na conta, pagode rolando, couro comendo em tudo que é boteco, laiá, laiá, bate na palma da mão, samba no pé, amigo secreto, festa da firma, happy hour... Quem disse que eu conseguia um Uber? Já com medo de perder o horário, pegamos um táxi que meteu o louco e chegou rápido no lugar indicado pelo GPS. Mano, era um estacionamento enorme e vazio, desses que faz a gente achar que o Jason vai aparecer por trás de um carro a qualquer momento, mas avistei uns caras tomando um goró numa portinha. Perguntei onde era o terminal, um deles explicou que era pra seguir sempre em frente que a gente ia achar. "Sempre em frente quanto, senhor? Uns cinco minutos?" Ele repetiu que era pra seguir em frente e abanou as mãos indicando a direção, mas pela cara dele vi que tava longe à beça. João saiu correndo na frente pra segurar o motorista até eu conseguir chegar ao embarque, caminhando a passos de um cágado centenário. Uma vez embarcados, apaguei mais uma vez, logo depois de deitar a poltrona. Acordei com a luz do sol batendo no Pão de Açúcar, aquela vista linda que anunciou que estávamos perto de casa.
Apesar de ter sido derrubada por esta gripe capirótica que está rolando, estou terminando o ano com o espírito elevado. O espírito, porque o corpo tá que é só o pó, desde segunda, e eu estou com aquela voz de vício de dona de cabaré em final de carreira. Meio claudicante, mas tomando pé dos trabalhos que ficaram pendentes, reorganizando a vida, fazendo novos planos, ansiosa pra ser liberada pros treinos do ironman 2022. Que comecem os jogos!
Boas festas e um ano novo arretado para todos! Obrigada por terem vindo até aqui comigo.
"Como vai? Tudo bem...
Apesar, contudo, todavia, mas, porém
As águas vão rolar, não vou chorar
Se por acaso morrer do coração
É sinal que amei demais
Mas enquanto estou viva e cheia de graça
Talvez ainda faça um monte de gente feliz"
Saúde, Rita Lee. 1981




Querida, quantos plot twists!!! João correndo na frente para segurar o ônibus parece cena de filme!!! Que bom que você conseguiu vencer tudo isso!!! ❤️❤️❤️