Do tsunami na hidromassagem, à nuvem de gafanhotos.

Que esse negócio de quarentena tá deixando o povo doido, não temos mais dúvidas, mas parece que rolou um sururu energético, que tá dando um sacolejo em alguns lares. Aqui por exemplo... Os dias após o penúltimo ciclo de medicação foram osso. Enjoada, toda roxa, cheia de equimoses, insônia por causa do corticóide pra tratar a pneumonite pela radiação, numa sexta-feira, resolvi ter um momento relaxante. Temos uma banheira de hidromassagem no primeiro andar, que nunca foi ligada por mais de alguns segundos durante treze anos. Eu admito que tenho uma paranóia imaginária, de que podem haver lacraias sorrateiras, morando naquele encanamento que nunca é ligado. Por isso, eu até encho a banheira, mas não mexo nos interruptores que fazem o motor funcionar. Presume-se por aí, a minha falta de intimidade e conhecimento das funções de cada interruptor, mas voltemos ao meu momento zen. Peguei a Alexa que ganhei recentemente da minha irmã, coloquei uma playlist de meditação, acendi umas velas, joguei uns sais de banho e catei uma tacinha de espumante. Parti pro meu momento spa, pra limpeza e renovação das energias, mas sem tocar em nenhum botão do motor da banheira. Lá pelas tantas, com a espuma abundante, tomada pela positividade da meditação, resolvi ser uma criatura racional, lidar com o meu medo das lacraias imaginárias, e apertei um dos três botões disponíveis. Okay, algum movimento na água, nenhum bicho saiu pelos canos e eu decidi testar pra que serviam todos os botões. Apertei o do meio e VRÁAAAAAA! Em coisa de dez segundos toda a água da banheira foi sugada sei lá por qual buraco do encanamento. Tsunami não é quando o mar recolhe e depois volta com uma onda gigante? Então, foi o tsunami da hidromassagem, só que saiu a água toda de uma vez só, por um ralo 10x10 que não deu conta, transbordou e inundou tooooodo o primeiro da casa. Eu tava ali, em choque, cheia de espuma, tomando consciência de que meu momento de meditação tinha literalmente ido pelo ralo e quase agradecendo que não tinha sido sugada pelo buraco negro da banheira. A pessoa toda gongada, tenta meditar e relaxar e termina como? Enrolada na toalha, o rodo numa mão, e o espumante na outra (resolvi não perder a pose). A sensação era de estar enxugando gelo... Por mais que eu empurrasse, a água parecia brotar de todos os cantos, perdi a paciência e decidi contar com a natureza, e esperar que até o dia seguinte o resto daquele brejo que virou o térreo da casa, evaporasse.

Na quarentena, não temos ido a salões de beleza, claro. Eu cortei as pontas dos cabelos no espelho e, pela primeira vez, passei uma Henna em creme pra dar uma suavizada nos brancos, que parecem ter ficado mais chamativos nas últimas semanas. Sei lá, me dei conta de que tô envelhecendo, trancada em casa há mais de um ano... João não tem essa autonomia pra lidar com os cabelos, e me implorou pra que cortasse a cabeleira dele. Peguei uma máquina, que eu não usava pra cortar os cabelos dele há pelo menos uns cinco anos, desde que ele resolveu que era melhor cortar no salão, e parti pra ação. A máquina estava cega, o pente da bonita soltou e fez um descampado na cabeleira do menino. Eu fiquei em choque pelo segundo dia seguido, parada com aquela máquina na mão, me sentindo a pior mãe do mundo enquanto olhava aquela clareira no meio da cabeça dele. Sorte que João é muito gente boa e me consolou dizendo que cabelo cresce, então tava tudo bem. Tentei dar uma igualada, e o garoto ficou com cara de soldado embarcando pro Iraque. Pedi uma máquina nova no Magazine Luiza, agora o estrago está consertado e ele até que está bem bacaninha de cabelos curtos.

No final de semana anterior ao último ciclo, arrumei uma infecção urinária, mas achei que era uma ótima ideia fazer um tratamento com um antibiótico de dose única. Prático e eficaz. Deu aquela aliviada nos sintomas, coletei um hemograma bem inocente, tava sem febre, fui liberada pro ciclo da semana passada. No dia seguinte ao tratamento... Pai amado! A gente tem um termo na medicina, chamado estrangúria. Eu só conhecia o termo na teoria, para relatar sintomas dos pacientes, mas quando senti, não tive dúvidas do que se tratava. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Estrang%C3%BAria). Parece que ao invés de fazer xixi, você está parindo três ouriços cobertos de uma mistura de creolina com soda cáustica. Naquele momento, eu desejei mais o resultado da cultura de urina, pra começar a tratar aquele infortúnio, do que acertar os seis números na mega sena. Bom, resumindo, quinta passada comecei o quinto esquema antibiótico de março pra cá, num intervalo de três meses. Tô, pra variar, de parabéns.

Vamos à parte boa. Quarta passada, eu e Guga comemoramos vinte anos de juntamento. As tais bodas de porcelana. Era dia de QT, não estão deixando os acompanhantes entrarem por causa da pandemia da COVID-19, então fui sozinha, dirigindo, e sentindo um certo prazer pela autonomia e independência. O pessoal me colocou num box na quina do prédio. Era Pão de Açúcar com enseada de Botafogo pela frente, Cristo Redentor e Pedra da Gávea pelas costas. A enfermagem é sempre um doce, e logo me trouxeram uma água de côco gelada. Só rajada de glória misturada com aleluia!

Sem intercorrências, saí de lá na hora do almoço. Toda vez que saio da QT, aproveito pra dar um rolê de carro pela Praia Vermelha, Urca e Aterro, lugares que eu amo e estou morrendo de saudades. Estava contemplando a vista de dentro do carro trancado, de máscara N95, e vi que o Belmonte da Urca tava com uma janelinha de take away. Achei que a data merecia umas empadas abertas de siri. Estacionei o carro na porta, saí de máscara, óculos escuros e um pulverizador de álcool 70% na mão, pra borrifar em qualquer coisa que pudesse parecer contaminada. Parecia uma psicopata naquele outfit. Fiz o meu pedido e fui pra perto do carro pra ficar esperando elas serem preparadas. Quietinha, na minha, aparece uma senhora que lembrava uma versão concentrada de Rita Lee. Baixinha, cabelos lisos, com franja, saia indiana comprida, aqueles óculos estilo John Lennon, tomando um chopp na calçada. Pela pinta, deve ser amiga ou parente da mulher de branco, que ficava no Posto 9, em Ipanema (entendedores, entenderão). Taquiopariu...tudo vazio e ela vem puxar comigo um papo muito louco. Cada vez que ela arriscava um passo pra frente, eu dava uns três pra trás, com medo dela surtar e querer me dar um abraço. Nesse caso, eu ia ter que tomar banho de álcool 70% na porta do Belmonte e lançar mão do Spray Mata Capeta, que o Malafaia diz que é 100% eficaz para tirar o diabo do couro do povo que tá com encosto. Aliás, o encosto daquela moça tinha cor, era verde e fazia fumaça, mas nem vou me alongar nisso. A minha exótica interlocutora me contou que estava escutando o barulho das bolinhas de frescobol dos velhotes que insistem em ocupar as areias sem máscara, e achou que fossem cavalos. Intrigante por si só, mas ela seguiu contando que na Urca passa muita polícia montada e que, certa vez vez, o cavalo da PM comeu o beck dela. A reação foi o melhor. Ela se dirigiu ao policial e mandou um "Se eu fosse o senhor, faria um exame no seu cavalo, porque ele comeu meu beck, mas não tem problema porque eu tenho bastante lá em casa, pro caso de precisar. Depois dessa, alguém chamou a remanescente de Woodstock e a levou pra casa. Ufa! Aquele alívio. Peguei minhas empadas e meti o pé.

À noite, João fez um rocambole de morango lindo e super delicioso pra gente. Ele havia prometido que faria um menu completo pro nosso aniversário de casamento, mas nesse contexto, achei mais fácil ele ficar só na sobremesa mesmo. Preparei uns antepastos e pedimos uns agnolottes com fungui tartufado, da Trattoria de Copa. Daqueles pratos cheios de memória afetiva, é um restaurante que frequentávamos bastante no início do namoro. Eu já contei que conheci Guga numa festa junina em Santa Teresa, né? E que achei ele um metido e arrogante, porque já veio me dando lição de moral sem nunca ter me visto na vida. Ele continua assim " chatinho" e implicante, mas não queria estar com outra pessoa ao meu lado.

Sexta tive uma consulta com o Dr M, cirurgião plástico, para desinflar um pouco os expansores. Aquelas laranjas Bahia embaixo do peitoral, estavam me atrapalhando até pra respirar. Colocava uma roupa de borracha pra dar umas braçadas e fazer minha fisioterapia respiratória, e com aqueles peitos postiços, não compressíveis, tinha a impressão de que tinha uma pessoa sentada no meu tórax, me impedindo de respirar...Saí do consultório muito satisfeita com a calibragem nova, e combinamos que a troca para as próteses definitivas só acontecerá pelo menos daqui a um ano. O tratamento com esse Lysoform abençoado, Oxalá permita, termina final do ano, e eu pedi encarecidamente por um semestre de normalidade, sem quimioterapia, sem drenos e pós operatório. Não difícil de convencê-lo, porque ele não recomenda fazer essa cirurgia no verão, já que é muita sofrência pra se passar naquele calor senegalês do verão do Ridejanêro.

Eu sigo aqui na minha montanha russa. Tem dias que eu consigo ficar razoavelmente ativa, mas preciso de horas pra me recuperar, muito diferente de antes do tratamento. Gasto boa parte do meu tempo fazendo pedidos on line, organizando e preparando comida, o que já está em me deixando bem aborrecida. Apesar disso, estou focando em conseguir fazer uma atividade física diária, mesmo que depois precise dormir horas a fio pra voltar às CNTPs. Reabilitar o cardiopulmonar, manter o linfedema longe e a mente sã. Porque 2020 tá caprichado, né? Eu tava resignada, mas poham, essa da nuvem de gafanhotos extrapolou todos os limites. Francamente! Quimioterapia a gente aguenta, mas nuvem de gafanhoto, pra quem tem medo de lacraias imaginárias, que habitam o encanamento ocioso, aí já é demais!