Dr. F e um Romero Britto na caixa de blindex.
- Juliana Netto
- 22 de ago. de 2021
- 9 min de leitura
Atualizado: 22 de ago. de 2021
Tem tanto tempo que não atualizo esse meu diário (que acabou virando um trimestrário), que fiquei sem saber por onde começar... Eu sei que disse que ia pedir dois peitos novos e a conta, tirei uma onda de que da próxima vez escreveria como uma mulher "repeitada", coisa e tal, então vou começar por aí: o novo, não é necessariamente o melhor! E foi assim com os meus peitos novos.
Eu já expliquei pros amigos não médicos que sofro com uma condição chamada esmeraldite. Fato é, que ainda não me vi livre desse infortúnio. Umas duas semanas depois da troca dos expansores pelas próteses definitivas, senti que o peito esquerdo tava querendo ser literalmente de ferro. O troço empedrou, retraiu todo, e eu fiquei com braço de dinossauro Horácio de novo. Aff! Depois de tanta canseira no pós operatório... Foi quase engraçado quando contei pro Dr. M que eu tinha refeito a contratura capsular. Ele não acreditou, disse que não podia ter dado errado tão cedo. Depois de umas seis semanas da repaginação, pedi pra antecipar a consulta de revisão. Depois que ele me examinou, vi o pobre se desfazendo, incrédulo, pálido, sumindo na cadeira. Tava provado que tinha dado ruim. Consulta longa, pesada, discutindo prós e contras de uma nova intervenção, as alternativas e o impacto disso na minha vida de aspirante a atleta
das paraolimpíadas do Brejão, aka, Aterro do Flamengo. Fiquei passada com a possibilidade de ter que girar um retalho de grande dorsal, esse músculo das costas, pra consertar o peitoral sequelado que eu carrego. Eu já sou uma bigorna com meu grande dorsal no lugar, imaginem como eu nadaria sem ele. Pedi socorro pro meu amado Dr. XY que, além de amigo, tem empatia pela minha causa, já que é nadador e sabe como essa coisa de poder treinar é importante pra mim. Nesse errejota de Deus, que a gente ama de paixão, infelizmente nem sempre temos acesso aos mesmos recursos que se apresentam em terras paulistanas. Dr. XY disse que eu provavelmente encontraria uma solução melhor pro meu caso em meio à dura poesia concreta de São Paulo, e me indicou o Dr. F.
Dr. F passou cinco anos no Instituto Europeu de Oncologia, onde se especializou em reconstrução de mamas. Fiquei imaginando que talvez ele pudesse ser meio metido e que eu não fosse conseguir ter bala na agulha pra pagar seus honorários... O bagulho ficou tenso. Se o melhor cirurgião estava em São Paulo, era aqui que eu queria estar. Agendei uma consulta pra semana seguinte, despachei os doguinhos pra casa da Heleninha, meti João, Guga, cooler e tudo mais no carro, e vim escutar o que Dr. F tinha a me dizer. A frase que resume a primeira consulta é "Nós adaptamos a cirurgia ao paciente, e não o paciente à cirurgia". A essa altura, vocês já imaginam que eu toparia qualquer coisa que ele falasse, sem nem mesmo saber como faria pra viabilizar o pagamento. Ele é maravilhoso. O plano de tratamento que ele propôs, incluía primeiro fazer uma lipoaspiração da minha pancinha, pra poder fazer uma lipoenxertia nos peitos (agora quase literalmente) de ferro. A gordura da barriga é centrifugada, ele separa só as células gordinhas (os adipócitos), e injeta onde está fibrosado. As células gordinhas vão ajudar a criar novos vasos, começar a dissolver a fibrose e dar contornos mais harmoniosos a esse angu de caroço que virou a minha comissão de frente. Além disso, elas vão aumentar a espessura da pele, fazendo um coxim, e pode ser que três a seis meses depois, seja possível fazer a capsulectomia (tirar esse couro de fibrose que se formou em volta da prótese), e tentar colocar as próteses na frente, e não atrás do peitoral. Se isso for possível, vai melhorar muita coisa a minha vida.
Pré operatório mais vida loka que uma pessoa pode imaginar. Eu já estou de volta ao trabalho presencial, pleníssima, o que reduz muito o tempo pras burocracias. Tudo corrido, quando terminei de fazer as malas, já estava exausta, antes mesmo de sentar no carro. Eu, João e Guga à beira de um ataque de nervos, os três numa pilha infinita. A vida da gente tem tanta novidade, que às vezes nem dá tempo de processar. Na hora de sair de casa, já umas quatro e meia da tarde, Guga disse pra gente passar em Bangu, pra pegar um caiaque usado que foi anunciado no OLX, pra podermos remar juntos por aí. Eu tô amando essa fase dele, in love com o mar, mas pensa: você tem que entrar em jejum absoluto às sete horas da manhã do dia seguinte, pra fazer uma cirurgia que é uma canseira, em São Paulo, e às quatro e meia da tarde do dia anterior, dá uma passada ali em Bangu na hora do rush, pra colocar um caiaque no teto do carro e depois dirigir seis horas até o destino. E foi assim. Com a bike speed pro Guga poder treinar e um caiaque no teto do carro, que chegamos na cidade de São Paulo, na zero hora de quinta-feira, dezenove de agosto. Eu quase chorei de cansaço e fome numa parada da estrada chamada Frango Assado. Um desespero, mas sobrevivi.

Pedimos uma pizza pelo iFood, que chegou ao prédio onde alugamos um apê, junto com a gente. Eles guardaram as coisas, comemos, entramos em coma. Guga acordou cedíssimo pra comprar café da manhã, e às sete eu parei de comer e beber líquidos. Vegetei até a hora de ir pro hospital, que fica a quatro minutos a pé aqui do apartamento.
No saguão da Beneficência Portuguesa, que aqui é chamada de BP, tem um coração enorme do Romero Britto, que nem aquele que uma mulher quebrou na frente dele , em Miami, depois que ele maltratou os funcionários dela. A "arte" fica dentro de uma caixa de blindex, pra ninguém resolver fazer a mesma coisa que a moça de Miami fez.
https://youtu.be/e3xuBVAouHg
Eu , por exemplo, naquela pilha que tava, podia ter derrubado, quase sem querer, a "arte" no chão.

Superado o espanto do Romero Britto, subi pra pré internação, e de lá fui encaminhada pra uma ante sala cirúrgica. A cirurgia atrasou e eu fiquei ali deitada até umas quatro e meia, quando Dr. F chegou. O anestesista, Dr. PP, perguntou se eu preferia caipirinha ou champanhe. Champanhe, ou um Freixenet, eu respondi. Ele puncionou minha veia, pegou uma seringa e avisou: " Aí vai o seu champanhe. Já está sentindo a tonteira chegar?". Colocou a máscara pra eu respirar e eu apaguei. Abençoados sejam os anestesistas! Acordei sete e meia da noite, no centro cirúrgico. Dr. F já tinha saído e me lembro que conversei horrores com Dr. PP, espero não ter falado nenhum absurdo. Fiquei mofando na recuperação pós anestésica até quase meia noite...
Eu sou uma pessoa que sente muita fome, então dá pra imaginar como eu cheguei no quarto, meia noite, já com dezessete horas de jejum... Avisei que sou vegana, e pressenti que essa treta da comida ia terminar mal. Pronto. Circo armado. Bug no sistema da nutrição. O que comem os veganos? De onde vem? Para onde vão? Guga, super prevenido, tinha levado uma quentinha com humus tahine, arroz integral e tabule, mas o pessoal da copa disse que não havia chance de esquentarem pra mim, porque isso estava fora dos protocolos. Disse logo que uma sopa de legumes com pão ou um arroz com feijão me resolveriam bem, mas levaram uma eternidade pra arrumar uma comida pra mim. Nesse meio tempo, eu apertei a campainha e avisei pro enfermeiro L que eu respeitava as regras, mas estava prestes a quebrá-las se a comida não chegasse logo. Aquele ser evoluído pediu pra eu dar a quentinha pra ele, que ele ia desenrolar o meu jantar. Ele mesmo esquentou e trouxe de volta com talheres de verdade (aliás, vai aí um agradecimento especial pra ele, troféu gente boa, com certeza!). A sopa, muito rala, chegou logo depois, uma água saborizada, na real. Joguei metade do arroz com tabule e húmus no caldo de legumes e fui feliz. Guga apagou do meu lado, e eu passei a madrugada assistindo TV, naquele quarto com luz azul. Deve ser alguma coisa de cromoterapia, eu imagino. Dá um ar meio lisérgico ao contexto do pós operatório, ainda mais quando a pessoa toma morfina.
Dia seguinte, na hora do café da manhã, recebi uma bandeja com uma etiqueta onde se lia "Bloqueios: vegana - leite e derivados, carne vermelha, frango, peixe, ovos, gelatina, suco de uva, frios." Junto com a bandeja, uma garrafa de leite, duas fatias de pão de forma e um sachet de geléia. Tava claro que nego não sabia o que me dar pra comer, né? Sem forças pra dizer que também posso comer frutas, aipim, aveia, tomar suco, chá, leite vegetal e tal. Pedi pro Guga comprar um café gelado com leite de aveia no Starbucks, porque líquido ajuda a enganar a fome.
Dr. F passou antes do meio dia pra me dar alta. Criatura iluminada. Sorridente e bem humorado, disse que a cirurgia tinha sido um sucesso, mas me orientou a usar o sutiã de compressão e uma cinta elástica na barriga. Tava bom demais pra ser verdade... Não só tinha que usar o sutiã de compressão de novo, como uma cinta com três faixas, cheia de borracha e revestida com um tecido grosso, boa mesmo pra encarar o inverno na Finlândia. Desconfortável e quente que só ela. Lá se foi o Guga comprar a cinta pra eu poder ir embora. Pedi ajuda pra enfermeira, prendi o troço na barriga, coloquei o espartilho de compressão medieval e nem passei no apê. Pedi um Uber pra um restaurante vegetariano com o sugestivo nome de Pé na Jaca. Delícia. Comi. Comi. Comi. Comi o que não tinha comido nós últimos dois ou três dias. Depois dormi. Sonhei com os cachorros, tô morrendo de saudades deles. Acordei, vegetei um pouco, tomei um coquetel de Dipirona com Dramin e dormi novamente.
Sexta-feira, trevas. A gente tá acostumado a virar na cama durante a noite, e não tem idéia do que é ter que ficar de barriga pra cima o tempo todo, dias a fio. Aí você se descobre chorando de dor no lombo, de tanto ficar deitada em cima das bandas. Fico imaginando o que sentem aqueles pacientes acamados, que desenvolvem úlcera de decúbito (escaras). O povo sofre, minha gente! De dentro dos nossos jalecos brancos, a gente não tem noção do sofrimento de quem está preso numa cama. Gustavo saiu pra pedalar bem cedo e na volta me trouxe um pão de fermentação natural com castanha e cramberries, e também uns docinhos veganos. Um mimo pra aliviar o sofrimento. Depois do café da manhã, disse pra eles irem passear num museu, porque eu ficaria de molho por aqui mesmo, meu corpo cansado não permitia muita badalação. Resolvi aproveitar a paz da casa pra tomar um banho. Um tempão passando acetona no couro, pra tirar a cola de esparadrapo. Aquele cheiro forte no banheiro, quase fiquei que nem a Nazaré. Doidona, alucicrazy. Olhei no espelho. Eu estava toda roxa. Peitos, barriga... Lembrei da Joyce Hassellman: queda da própria altura. Pensei que pra estar desse jeito, eu tinha que ter caído da própria altura e rolado escadaria da Penha abaixo, batendo em cada degrau, não bastava tropeçar na sala... Cobri os roxos com a armadura de compressão e esqueci o assunto.
A manhã do sábado foi mais alvissareira. Depois de meio jarro de dipirona e um Tylex, eu parei de sentir dor. Coloquei uns clipes na TV, ouvi o João reclamar que a década de oitenta era muito cafona. Chamei eles pra irmos almoçar na feira da Liberdade. E lá fui eu, cheia de esparadrapo no peito, comer risoto coreano e feijão doce. As coisas lá são ótimas e os mercados baratíssimos, frente ao que estamos acostumados na zona sul do errejota. Um quilo de shimeji a vinte reais, uma bandeja de Gyozas a oito dinheiros, toneladas de gengibre a preço de banana. Saímos com tudo que coube nas ecobags que levamos.
Depois do almoço, passado o efeito da dipirona, fui do restaurante direto pra farmácia, onde comprei uns adesivos de Salompas importados do Japão. No apartamento, colei um deles no lombo e liberei os dois novamente, pra irem passear sem mim. Terça-feira eu estava correndo onze quilômetros, hoje dou uma volta rápida na feira e preciso de dois dias pra me recuperar do esforço. Essa temporada paulistana tá me lembrando a minha ida pra Cidade do México em 2019, no meio da quimioterapia. Tanta coisa pra ver, tanto lugar bacana pra conhecer, mas meu corpo só pensava em descansar.
Agora à tarde, encontrei fuligem no banheiro, nesse prédio aqui na meiúca da cidade São Paulo. Acabei de ler no jornal, que foi um incêndio florestal no Parque do Juqueri, que já lambeu mais da metade do último fragmento de cerrado da região metropolitana de SP. Apenas mais um capítulo do Apocalipse ambiental brasileiro. Vou me alienar maratonando alguma série no Netflix, ou aprendendo no You Tube como dar nós de marinheiro. Espero que as siriemas, aves símbolo do parque, façam como as fênix, e ressurjam das cinzas desse braseiro.
Fico aqui por SP até quinta, esperando a consulta de revisão. Prometo não me demorar muito pra dar mais notícias. Depois conto pra vocês como ficou o primeiro jantar que o João está preparando na panela de bambu que compramos lá na Liberdade. Beijos saudosos e até breve!

















Abri os comentários só para te dar um alô e te mandar um beijo
Dani do IFF (ainda continuo lá …)
Ju, muita força e menos dor pra você!!! Beijos, Chris Pontes
Querida, vc é um exemplo de força e perseverança!!! Te admiro muito!!! Que vc se recupere logo!!! Saudades mil!!!’ ❤️❤️❤️❤️