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Hora de pedir dois peitos novos e a conta

  • Foto do escritor: Juliana Netto
    Juliana Netto
  • 9 de mai. de 2021
  • 10 min de leitura

O texto a seguir, mais do que um boletim informativo pros meus amigos e familiares, é um momento de auto análise. Um balanço antes de fechar as contas. Aqui, não as contas do mês, mas dos últimos longos vinte e seis meses. Estranho dizer que alguém foi libertado por um pesadelo, mas foi justamente o que me aconteceu. Todo mundo sabe que os últimos anos foram, no mínimo, esquisitos. Se eu fosse ficar de chorumelas e somasse isso ao sofrimento do corpo, não sobraria energia pra agir, pra resolver. Diria que recalcar, no sentido psicanalítico, às vezes é uma questão de sobrevivência. Eu sou da turma do vamo que vamo, mas o que fica guardado no inconsciente, uma hora vem à tona. Primeiro vou definir esmeraldite pra quem não é familiarizado com o termo: "Esmeraldite. [de esmeralda (1) por alusão à pedra do anel de grau do médico, + ite]. Med. Gir. Dificuldade, muitas vezes inesperada, que sobrevém no curso de tratamento de paciente médico ou parente de médico, frequentemente em caso tido como de resolução tranquila". Teoricamente, findada a quimioterapia, a vida seria suave e tranquila. Mas eu sou abençoada com uma esmeraldite nível hard, heavy metal mesmo, e parece que vim predestinada a fazer check list de evento adverso. Eu vinha com aquela história do braço que tinha inchado e ninguém sabia explicar porque, e que o Dr XY, aka Dr. Szymanski, falou que não era linfedema e me mandou procurar um bom ortopedista. Procurei o Dr. B, que estudou comigo no CAp e também na mesma turma da faculdade, e foi quem operou meu ombro direito esfacelado, em 2012. Fiz a ressonância do braço: lá veio o diagnóstico de necrose avascular da cabeça do úmero. Aff. Então faz ressonância dos dois ombros e do cotovelo. Necrose também no cotovelo. Solução proposta: cirurgia para descompressão e enxerto nas extremidades do úmero, esse osso grande do braço, tanto no ombro quanto no cotovelo. Cirurgia simples se comparada a todas as anteriores, mas é sempre a lenha de internação, anestesia geral, intubação em tempos de COVID... Foi aí que eu, que há meses sonhava todo santo dia que estava no hospital (trabalhando, não me tratando), tive uma noite de sonhos muito loucos, angustiantes, mas libertadores. Sonhei que ia a uma festa, na mesma rua da casa espírita de que faço parte, mas do outro lado da rua. Cheguei antes do Guga, sozinha. Ao caminhar para o bar para comprar uma cerveja, eu me senti tonta e com o pensamento lentificado, dificuldade de falar, tudo meio confuso. Meu corpo não respondia aos comandos. Encostei numa mureta, tentei colocar as pernas pra cima, tive que levantá-las com as mãos, elas não funcionavam, estavam paralisadas. Aí o sonho recomeçou, como se eu estivesse zapeando os canais da TV a cabo do cérebro da Rede Juliana de Comunicação, e assistindo a fragmentos de vários filmes. No canal Bis da minha cabeça, eu entrava num grande galpão, onde rolavam umas músicas sensacionais e eu dançava com os meus mais queridos, aquela explosão de felicidade. Uma mistura de bailão da Cidade de Deus com a festa do nosso bloco/meu aniversário, que aconteceu no mês anterior ao diagnóstico do cajá duzinfernos. Só de lembrar, já começa a tocar Kung Fu Fighting no rádio do meu encéfalo. Em outro "canal" da minha cabeça, no Telecine do subconsciente, Guga já estava comigo na festa, que logo foi interrompida sob protestos dos presentes e do dono do bar, que eu descobri ser o Curupira disfarçado, reclamando que tinha que pagar as contas, falando que assim não era possível, que a pandemia ia levar ele à falência! Isso aí, compas, até o Curupira entrou na roda. A gente foi descendo as escadas pra sair da festa, mas paramos no banheiro antes de chegar ao portão. Eu me olhei no espelho, vi meus cabelos ralos, poucos fios no topo da cabeça, dava pra ver o couro cabeludo. Eu fiquei espantada, mas seguimos em direção ao portão. Em frente à saída, havia uma aglomeração, e várias pessoas queridas vinham me abraçar. Eu, horrorizada e paralisada, tentava dizer: "Mas não pode abraçar, tem a pandemia".



Não precisa ser terapeuta pra perceber que nesse sonho estão presentes várias coisas que eu não pude controlar. Uma delas, bem óbvia e que atingiu a todos, foi a pandemia e o isolamento, a falta das festas e dos abraços. Na verdade eu já vinha forçosamente meio isolada desde que comecei o tratamento, a pandemia foi só a pá de cal, a radicalização do enclausuramento. Quando caminhei pro bar, a tonteira, fraqueza, o raciocínio difícil, remeteram a sensações que experimentei durante o tratamento, nesse período em que meu corpo em nada correspondia aos meus desejos. As pernas que não respondiam, me lembraram das anestesias de três cirurgias num período tão curto. Os cabelos ralos, a quimioterapia, com todos os seus eventos adversos, incluindo a própria alopécia (queda dos cabelos). Eu não me lembro de ter chorado no diagnóstico e nem durante o tratamento. No máximo, uma marejada nos olhos. Mas depois dessa noite de sonhos loucos, eu chorei. Não de tristeza, mas de alívio daquele pesadelo ter acabado. Verdade que ainda preciso de temporadas no estaleiro, pra dar uma arrumada no casco dessa nau que sobreviveu a muitas tormentas. Quinta, fui fazer mais duas ressonâncias a pedido do Dr B, que quer investigar se não tenho necrose em mais nenhum osso do corpo. Eu confesso ter ficado meio aborrecida, porque tenho percebido que quem procura, acha. E cada vez que se acha uma coisa nova, é outra pausa que faço no espinhoso caminho para voltar às minhas CNTPs. Às 6:15 da manhã dessa quinta-feira, eu estava na porta da clínica. Saí apressada pra entregar o carro pro manobrista, mas bati a porta com o casaco no meio. Pronto, a trava elétrica da porta do motorista parou de responder aos comandos, e eu me plantei lá, obstruindo uma faixa da rua do Jardim Botânico, olhando pro meu carro com um casaco pendurado na porta, que não saía nem por ordem do papa ou magia do Harry Potter. Eu já estava atrasada e disse ao manobrista que ele poderia cortar a porcaria do casaco se fosse necessário, mas pedi pelamordadeusa pra ele dar um jeito naquilo, pra eu fazer o exame. Mais tarde ele me disse que deu muito trabalho, foi muito difícil, mas que conseguiu arrancar o casaco e deixou ele esticadinho no banco de trás. Um fofo o moço. Eu tava morrendo de fome e tão ansiosa com o possível resultado do exame, que agradeci muito, mas nem perguntei como ele conseguiu a façanha de destravar a porta. Passei bem pelo ritual de ficar semi nua e colocar o hobby de viscose, além de passear pelos corredores gelados quase descalça, calçada só com os propés (aquelas toucas cirúrgicas pra proteger os sapatos). Não paniquei nos quase sessenta minutos dentro da máquina. Pelo contrário, cheguei a cochilar. Finalmente acostumei a ficar fechada dentro daquela caixa barulhenta. Aproveitei a viagem à clínica pra colher uns exames de sangue pré operatórios, que o Dr. M pediu. Sim, chegou a hora de tirar os expansores que estão debaixo desse músculo grandão, o peitoral maior, e remover suas válvulas inconvenientes, que se insinuam protuberantes no meu tórax, e substituir esse combo bizarro pelas próteses definitivas. E lá vou eu, pra mais uma internação, anestesia geral, cirurgia com colocação de drenos, aquele pós operatório que inclui uns três a quatro dias sem banho de chuveiro, só poder dormir de barriga pra cima, e não poder nadar por uns sessenta dias. Respiro fundo e penso que assim eu viro a página e posso encerrar essa epopéia. Estou contando com um resultado normal das ressonâncias de quinta, pra que isso possa ser cconcretizado. Por enquanto, sigo sem saber se deu ruim nos meus quadris. Oxalá queira que não! Na próxima semana, poderei voltar ao trabalho presencial. Ainda que eu saiba que em breve terei um novo afastamento pra colocar meus peitos de ferro definitivos, a idéia de estar no chão do hospital, exercendo a profissão que me define nessa vida, com pessoas que eu gosto tanto, dá um levante danado. Claro que tem muitas outras coisas que fazem parte do que sou, mas minha porção médica, que foi amputada durante esse período, ainda me traz muita realização, apesar da canseira do dia a dia...mas não pensem que foi fácil lidar com o trem fantasma da perícia do MS. Pai amadoh! Mano do céu! Cheguei lá com o atestado do Dr. B, dizendo exatamente o tempo que eu precisava ficar de molho, e o dia exato em que poderia voltar a ser médica. Cheguei lá e reconheci aquele médico que depois da minha primeira cirurgia, disse que já tínhamos trabalhado juntos no passado, mas que eu estava diferente, meu cabelo era maior antes. Ganhou o troféu sem noção por essa declaração pra uma paciente oncológica que acabara de ser atropelada por uma combinação de cinco quimioterápicos e arrancado os dois peitos e uns tantos gânglios do suvaco há menos de de uma semana. Enfim, acho que ele é gente boa, só não soube lidar com a situação. Da última vez, nessa última perícia, eram ele, uma moça que não parava de me olhar de cima a baixo, e um senhorzinho que parecia estar fazendo terapia ocupacional depois da aposentadoria expulsória. O meu "amigão" mandou logo um "você está fazendo exercícios?". Sim, até eu ter que operar o ombro e o cotovelo, até que tava me empenhando, mas a vida não tá colaborando e eu tive que dar um tempo. A moça sentada, me analisando profundamente, e o senhorzinho de face shield catando milho e tentando anotar as respostas que eu dava às perguntas do meu velho amigo, que seguiu com suas observações pertinentes: "Você está com porte atlético, parece bem melhor que da última vez". Bom, de fato podemos dizer que eu não estava no meu melhor momento. Tentei abreviar dizendo que tinha data definida pra voltar, que eu tava me sentindo bem e não aguentava mais ficar plantada em casa. Porque se você tá com dinheiro, viajando, indo ao cinema, batendo pernas, é uma coisa. Se sua vida se resume a fazer fisioterapia, mercado, almoço, louça, lembrar de tomar remédio pra evitar recidiva,fazer exames e se preocupar em tentar receber o reembolso das contas cheias de números que você ganhou nos últimos meses, aí fica puxado. Dá vontade de estar dando plantão de 24 horas no CTI, fazendo uma faxina, correndo uma maratona! Mas voltemos à perícia. O pessoal ainda tava bolado de liberar a moça do checklist dos eventos adversos (no caso, eu mesma). Mano, o cara me fez levantar o braço, botar pra trás do pescoço, virar a mão e tudo mais, pra no final dizer que eles iam decidir o que fazer comigo, que eu esperasse fora da sala. A essa altura eu já estava lá no prédio mal assombrado da Rua México há mais de duas horas, e o Guga começou a perguntar se realmente precisava daquilo tudo pra me deixar voltar a trabalhar. O moço idoso que catava milho no computador finalmente saiu da sala e veio ao meu encontro. Meus olhos brilharam! "Ele vem trazer o papel da alta, só pode ser isso!". Pra minha decepção, ele ainda tava na etapa de anotar os medicamentos que eu tomava. Confirmou os da asma e depois de um certo esforço registrou o tamoxifeno, o bloqueador hormonal que dá menopausa química e um calor duzinfernos. Depois, veio a moça que não parava de me encarar e aí eu fiquei tensa quando ela perguntou se eu não lembrava dela. Brother... já não bastava o meu amigão, agora a outra também me conhecia. Ah, páaaaara! "Você lembra da fulana? Aquela que era gorda? Então...ela tava muito gorda e você não vai acreditar...'. Pausa pra vocês pensarem na minha cara, e voltamos pra ela. "Menina, ela morreu! Lembra que a gente trabalhou juntas naquele hospital no Méier?". Poham...puxou lá do meu R1, eu nem tinha conhecido o Guga ainda. Mandei aquela clássica "Claro que eu lembro! Mas que triste que ela morreu...'. Ela perguntou de novo se eu realmente queria voltar a trabalhar, disse que gente muito acostumada ao movimento sentia falta mesmo, e eu só implorei pra ela ajudar pra eu ter alta e nunca mais ter que voltar naquele prédio esquisito. Depois de mais uns quarenta minutos de agonia, finalmente apareceram com o papel da alta. Eles desejaram boa sorte, deixaram transparecer uma certa saudade dos nossos "encontros", e a moça disse até que era mesmo melhor se a gente se encontrasse fora dali, pra um chopp, por exemplo. Peguei a minha carta de alforria e descemos pelas escadas mesmo, pra sair dali o mais rápido possível. Eu fiz muitos planos pra 2021. Era o ano de fazer um ironman pra comemorar o fim do tratamento, mas eu não coloquei essas cirurgias e nem a pandemia na conta. Planos adiados, mas não cancelados. Transferi a inscrição pra 2022. O esporte ajuda até quando a gente não pode praticá-lo. Isso porque a vida inteira, a gente treina a cabeça pra superar as dificuldades, desenvolve tolerância à dor, trabalha o corpo e o cérebro pra fazer o que parece impossível... Sobretudo a certeza de que, passadas essas adversidades, poderei voltar a desfrutar do prazer de treinar vendo o sol nascer, de nadar no mar que eu amo e correr e pedalar na floresta que revigora, me dá o combustível pra não desanimar. Tem gente que ficou preocupada de eu ter sumido das redes sociais e me escreveu no privado, perguntando se eu estava bem. Eu agradeço MUITO, em caixa alta mesmo, a preocupação e o carinho, mas vou explicar esse sumiço. Por mais que eu seja obrigada a trabalhar a minha resiliência pra lidar com os desafios de saúde que eu ainda enfrento, quando olho ao redor, vejo meu sofrimento como pífio. Eu tenho acesso aos melhores médicos, hospitais e laboratórios. Eu tenho uma família estruturada, um filho maravigold e um marido que me ama como eu nunca imaginei ser amada por alguém. Uma casa confortável, muitos amigos. Trabalho onde qualquer Infectologista gostaria de trabalhar... Eu poderia postar uma foto sorridente com frases motivacionais, frisando algo como "espairecendo com responsabilidade" ou, "tirei a máscara só para a foto", só pra manter algum grau de atividade nas redes, mas eu não tenho conseguido. Acho que por isso parei de escrever no blog. Travei mesmo, bloqueei. Minha luta pareceu pequena diante das mais de quatrocentas mil vidas perdidas. Dentre elas, um tio e um primo meus, a mãe de uma amiga, os pais de outras, a tia ou @ companheir@ de gente próxima. Essa semana, perdemos o Paulo Gustavo, que mesmo com todo o dinheiro do mundo, não resistiu a esse vírus maldito. Ele poderia ter sido vacinado, mas não... Essa semana, no meio de uma pandemia sem precedentes, e a despeito do sofrimento de centenas de milhares de pessoas, a polícia do Rio de Janeiro promoveu uma chacina na favela do Jacarezinho. Nossa, tá difícil de aceitar. Eu sei que a maioria das pessoas já vai ter desistido de ler esse texto a essa altura das minhas declarações, mas eu preciso falar sobre essas coisas. Eu sempre lembro de um professor da escola, que repetia que a gente nunca deveria perder a capacidade de indignação. Obrigada, professor! Mas toca o bonde, cocheiro! Vida que segue. Hoje consegui correr os primeiros 12k depois da última cirurgia, lentos, mas salvadores. Depois, pude, pela primeira vez desde o início da pandemia, encontrar minha família. Mamãe vacinada, Guga e minha irmã também. Amanhã, será a primeira vez em mais de dois anos, que estarei no hospital como médica novamente. Eufórica e aterrorizada ao mesmo tempo, com medo de não saber mais fazer as coisas, de estar desatualizada. Respira, Juliana, respira.



Da próxima vez que eu escrever por aqui, serei uma mulher "repeitada". Há muito por vir, que venham momentos de profunda felicidade, mas agora, eu só desejo que a força esteja com a gente. May the 4th be with us!

 
 
 

1 comentário


branca2read
10 de mai. de 2021

💐😘😘

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