Melhor aniversário da vida
- Juliana Netto
- 11 de fev. de 2021
- 7 min de leitura
Meu melhor presente de aniversário é poder comemorar o aniversário do João no dia seguinte. Desde que ele nasceu, nunca mais foi o meu, mas o nosso aniversário. Quando eu descobri que estava grávida dele, a gente morava em Icaraí, na breve passagem que tivemos pela terra de Araribóia. Eu jurava que estava com hipotireoidismo, por isso estava com tanto sono e sentindo o corpo inchado. Vovó Efigênia tinha Hashimoto, que é aquele problema de tireóide que não trabalha, logo, eu tinha absoluta convicção de que essa também era a razão dos meus sintomas. Só podia ser a tireóide, óbvio! Foi a Dani Amaral, minha amiga pediatra e endocrinologista que, no nosso plantão noturno no Caju, na bancada de prescrição do CTI, me deu uma dura e disse para eu colher um beta HCG. Acho que ela nem se recorda disso... Eu lembro como se fosse ontem que acordei, saí do plantão de manhã, e fui pro Largo do Machado colher sangue. Na época eu trabalhava no INTO e no meio da tarde, avisei que precisava urgentemente ir pra casa, porque estava com tanto sono que tinha medo de morrer na ponte Rio-Niterói, por não conseguir dirigir até lá. Cês num tem idéia do sono que eu sentia, parecia que eu tinha tomado um sossega leão. Chegando no nosso apê, eu apaguei imediatamente. Quando acordei, fui ao escritório, peguei o telefone e liguei pro laboratório pra saber se já tinham algum resultado. A atendente me informou que o beta HCG estava positivo. Eu fiquei muda, completamente chocada com a notícia, e a moça falando do outro lado: "Senhora? Senhora? Senhora?". Liguei pro Guga, que abandonou a aula, pegou um táxi pra ir do Jardim Botânico pra Niterói na hora do rush, e já entrou no apartamento abrindo uma latinha de cerveja, atordoado. A ligação que eu fiz enquanto esperava ele chegar, foi pro meu parça Márcio Nehab, pedindo indicação de um obstetra. Advinhem quem ele indicou? Sim, o Dr XY! Foi o mesmo médico que trouxe o João ao mundo e anos depois salvou minha vida, junto com a Dra XX, e a Dra L.
Mas hoje eu quero falar do João. Em 2019, eu e ele fizemos uma viagem incrível juntos. Primeiro fomos a Berlim, onde ficamos num hotel bem bacaninha, mas que não tinha geladeira no quarto, só uma cafeteira. A gente não se apertou. Íamos ao supermercado, comprávamos comida pro lanche da noite, e deixávamos as bebidas pra gelar na sacada, na neve. Na seção "kaffee", compramos um pote de café solúvel. Era tomar uma caneca do café pela manhã, e ter a sensação de ter engolido um saco de cimento, mas quem levanta da cama sem cafeína? Então insistimos no café sinistro por três dias, até descobrirmos pela Bixby, a auxiliar do celular, que estávamos tomando cevada em pó, e não café. De Berlim, fomos para a Polônia. Alugamos um apartamento em Cracóvia e planejamos que íamos visitar os campos de Auschwitz por conta própria, pra economizar muitos euros. Na primeira hora na cidade, pela dificuldade em estabelecer comunicação pra comprar comida no mercado, vimos que o buraco era mais embaixo. A senhorinha polonesa dona do mercado só dizia "no english, no english", e foi um sufoco pra conseguir comprar uns víveres pra cozinhar no apartamento. Quando tentamos comprar queijo ralado (grounded cheese), foi um show à parte. A moça gritava "cheese, cheese"! E apontava pros queijos de geladeira, de colocar no pão. Quando a gente pediu café, ela fez cara de que ia ter um AVC, e eu me convenci de que seria impossível fazer o tour sem guia que falasse inglês. Quando percebeu o meu desconforto com o preço dos tours guiados, o moleque foi na mala dele, pegou um bocado de euros da grana que ele tinha ganhado vendendo panetones no Natal, e deu na minha mão. Disse que era a colaboração dele pra viagem. Contratamos o tour pela internet e no dia seguinte, uma van com um guia que era sindicalista e socialista, foi nos pegar. Auschwitz é uma porrada, um soco no estômago, mas depois de visitar Bierknau, o dia termina com um passeio numa mina de sal linda de viver, pra tirar um pouco do peso e permitir que as pessoas consigam dormir à noite, depois daquela excursão mórbida. De Cracóvia, fomos pra Praga, de ônibus. A rodoviária estava cheia de turistas. Quando o motorista, que tinha um bigodão e também não falava inglês, abriu o compartimento de bagagens, a turba enfurecida começou a se estapear por um lugar pra colocar as malas. Cena de filme. Cotoveladas, empurrões e dedo no olho, mas conseguimos enfiar nossas coisas no bagageiro, pegamos as passagens e fomos embarcar. Na escada do ônibus, depois daquele esforço épico pra conseguir despachar a bagagem, o bigodão olhou nossos tickets e, gesticulando, conseguiu explicar que o nosso ônibus não era aquele, era o que sairia depois. Poham, mano do céu... Há males que vem pra bem, e o outro busão tava tão vazio, que a gente podia até juntar duas poltronas pra deitar e ficar mudando de lugar dependendo de onde a vista estivesse mais bonita. A paisagem da estrada, toda branquinha de neve, era linda, nem dava vontade de dormir, só de ficar admirando. No resto da viagem, a gente chacotou um bocado juntos. Eu quase perdi os dedos dos pés quando entrou água na minha bota e eu fiquei duas horas enfiada na neve pra ele conhecer o castelo de Praga, que eu já tinha visitado em 2010 (amor de mãe é inabalável), prendi o dedo na catraca do metrô de Paris tentando passar com as malas na hora do rush, comemos bacalhau com a Teca no Porto, e terminamos com uma visita relâmpago a Amsterdam, onde visitamos a casa de Anne Frank e fechamos o roteiro história do nazismo-segunda guerra que ele tinha escolhido, ciceroneados pela minha amiga Clarisse e o marido Jens.
Depois de um 2018 pra esquecer, 2019 tinha começado realmente fantástico, mas menos de dois meses depois dessa viagem, eu descobri o cajá maligno no peito. De lá pra cá, vocês já conhecem a novela. Touca gelada, dedos dormentes, falta de apetite, duas cirurgias, radioterapia, pneumonites, pneumonias, infecções urinárias, COVID, fratura de costela, e várias vezes tive a clara sensação de que eu ia parar no parquinho do pé junto. Na rabeira de 2020, a Dra XX me deu alta do Lysoform abençoado. Aquela promessa de volta à normalidade!
Engatei nas aulas de natação no mar e antes do Natal fiz uma travessia do Posto seis ao Leme, nadando com a desenvoltura de uma girafa no mar. Fiquei me sentindo empoderada com a façanha, tão pouco tempo depois de me livrar da quimioterapia. Naquele dia, fazia uns cinquenta graus na sombra, um calor duzinfernos. Cheguei em casa e notei que estava toda inchada, mas o braço esquerdo, aquele do esvaziamento axilar que eu fui tão relutante em fazer, estava muito inchado. Bateu o pânico do linfedema, era tudo que eu não queria pro meu final de ano. Eu me tranquei no ar condicionado, com os braços pra cima, apoiados numa pilha de almofadas, e só saí de lá no dia seguinte, quando o braço desinchou um bocado. Nesse dia, morri de dó do João porque, mais uma vez, eu não pude ajudar no final de semana que ele mais trabalhou fazendo panetones. Ele não decepcionou e se virou nos trinta sozinho. Na mesma semana, procurei a melhor fisioterapeuta oncológica do planeta, Dra AK, que não achou que aquilo tinha cara de linfedema, mas inchaço é inchaço e o tratamento não muda muito. Na dúvida, foi taping, drenagem linfática e braço enfaixado. Depois do meu fracasso em conseguir ficar mais de duas horas com as ataduras elásticas por cima de uma camada de Hipoglós, que me transformaram numa múmia moderna perdida no verão carioca, ela me orientou a usar uma malha compressiva para fazer atividades físicas. A tal luva, que vai da mão até o suvaco, é a mistura de uma meia Kendall bem grossa, daquelas pras varizes mais rebeldes, com uma meia Vivarina, que não corta nem com as facas Guinso 2000. A malha é fresca como uma máquina de assar frango na padaria! Fui obediente, passei a usar a malha toda vez que ia pedalar, mas às vezes o calor me dava a sensação de que eu podia ter um mal súbito e fazer a passagem a qualquer momento. Abaixo os estágios da tentativa de tratamento do inchaço do braço.
Semana passada, fui ao Dr. XY, e ele concordou com ela que aquilo não era linfedema. Suspeitou de uma ruptura de tendão e me mandou procurar um ortopedista. Aí começa uma outra história, que não há de ser nada diante do que foi a batalha contra o cajá malvadão. E, pelo menos por hora, eu me livrei da luva compressiva
Ontem eu coloquei a placa pro bruxismo, que me quebrou boa parte dos dentes da boca durante o período de confinamento, e me custou o rim que restava, pra consertar o estrago. Parece que estou com uma ferradura na boca... João disse que eu tô parecendo o Bolsonaro falando taokey e Gustavo perguntou se era realmente necessário usar quando eu não estivesse dormindo. Aquele apoio que só a família, com toda a intimidade e sutileza, sabe dar. Pra animar mais o dia, nosso doguinho mais novo, conhecido como Cheewie vida loka, fugiu pelo portão da vila e saiu correndo na contramão dos carros. Um Guga transtornado e à beira de um ataque de nervos saiu correndo e gritando para os carros pararem enquanto o cachorro seguia correndo no meio da rua. As pessoas desceram de bicicletas e motos, os carros pararam e o meliante foi resgatado com vida, quase na esquina do viaduto. Mas ontem também foi meu aniversário, o melhor aniversário da minha vida. Ganhei um vale pra passar o que espero ser mais uma longa temporada aqui pela Terra, e só tenho motivos pra comemorar. Eu nunca imaginei que um jantar entregue pelo iFood, só com o João e Guga, pudesse ser um dos momentos mais felizes da minha vida.
E agora, cá estou eu, emocionadíssima com o aniversário desse cara que já calça 42, tem uma perna cabeluda e voz de homem, e hoje ganhou o direito de votar, um verdadeiro cidadão. Dezesseis anos! Se eu pedisse, não imaginaria ganhar um filho tão doce e companheiro. E paciente, bota paciente nisso. Foi ele quem ajudou a me puncionar quando eu precisei fazer antibiótico venoso em casa. Corre pra pegar o tamoxifeno quando o meu alarme toca, faz massagem quando estou empenada, e até me deu bronca e fez questão de cuidar dos curativos quando eu me estraçalhei no asfalto, caindo da bicicleta em Santa Teresa dia desses. Ele sempre diz que eu vou ser uma velha terrível, que vou dar muito trabalho pra ele, e que vai ter que ficar me ligando pra perguntar onde eu estou e me mandando voltar pra casa.

Deus te ouça, meu filho! Quero estar aqui por muitos e muitos anos, te mimando, aproveitando a sua boa companhia e o seu senso de humor. Te amo, João Pedro!

























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