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Peppa ranzinza e a Mulher Maravilha carioca.

  • Foto do escritor: Juliana Netto
    Juliana Netto
  • 28 de jun. de 2019
  • 4 min de leitura

Demorei a escrever essa semana, basicamente porque não estava assim tão bem humorada, ou melhor, eu estava ranzinza. Quarta-feira da semana passada, eu comecei a tal quimioterapia branca. R, a enfermeira sorridente e bom astral que recebe a gente antes das consultas, tinha me avisado que ela poderia dar dores nas pernas e tal, mas eu tava tão animada com o fim da "vermelha", que confesso que não botei muita fé. Até porque uma das drogas do novo combo, é da mesma classe do quimioterápico que eu prescrevo como padrão pros meus pacientes, lá na Fiocruz. Estava com a sensação de que agora pisaria em terreno conhecido, aquele Lysoforme não representaria lá tanta novidade. Ah, tá, vai nessa... No mesmo dia, depois das sete horas e meia na poltrona do papai, a síndrome de Peppa 🐖 afro-brasileirona já se instalou, acompanhada de um frio-calor e um vermelhão no rosto, que me deixou ainda mais parecida com a personagem do desenho. Rolicinha e vermelha. Quinta à noite começou um comichão muito louco, uma coceira de querer arrancar a pele das pernas com as unhas. Passou. Sexta, eu já estava com os olhos fechando de inchados, e veio uma dor no corpo que me fez questionar se eu tinha sido desafortunada a ponto de pegar dengue ou Chikungunya no meio desse processo. Infelizmente, fui informada que o novo chemo-combo tem dessas coisas mesmo. Fui orientada a tomar um analgésico, sossegar o facho e esperar passar. Admito, paciência nunca foi meu forte, mas até que estou me saindo uma pessoa bem resiliente. Eu tenho um amigo, cuja identidade será preservada por questões de privacidade, que é o líder de um centro de religião de matriz africana na zona oeste, lá pelas bandas da Restinga de Marambaia. Quem me conhece, sabe que eu sou católica-apostólica-ecumênica-anarco-macumbeira, mas chegada mesmo num tambor, que é muito mais a minha cara. No último sábado, esse amigo me convidou pra ir conhecer o espaço, convite este que foi prontamente aceito, já que eu só fazia sentir dor em casa, João estava num curso e Guga trabalhando no computador. Deixei o carro na casa dele, numa rua muito agradável e arborizada desse Ridejanêro, e partimos na sua pickup. Fomos pela orla, vidros abertos, aquele vento do mar batendo no rosto, já começou dali a limpeza espiritual. Chegamos ao destino, lugar bucólico, desses que dá vontade de abrir uma rede e passar a tarde balançando embaixo de uma árvore. Todos os bons espíritos devem querer ficar por ali, curtindo o axé do lugar. Almoçamos num restaurante próximo, eu parei pra aproveitar as promoções imperdíveis (imagina se eu ia perder a chance de comprar a cartela de 30 ovos a R$8.98 e a tangerina a R$1.99 o kg), cumprimos a parte religiosa e, lá pelas dez e pouco da noite, começamos a nos mobilizar pra voltar. Uma moça que havia aparecido na casa para agradecer por uma graça alcançada, pegou carona na pickup na volta e, apesar da compleição física, se ajeitou no espacinho onde se guarda o pneu, na cabine extendida. Eu fui na frente, abraçada com a minha cartela de ovos, as tangerinas e o celular. Quando chegamos de volta à rua do meu amigo, ao me levantar pra sair do carro, meu telefone voou do meu colo para dentro do bueiro ao lado. O bueiro com aquela tampa de ferro enorme, 200 anos de musgo pra todo lado e, bem lá no fundo, meu telefone piscando sua luzinha azul no breu da noite. Passamos um tempo mudos, sem saber se a reação correta seria rir ou chorar. Eu, toda aleijada pelo último chemo-combo, com um vestidinho branco, bem menininha, sem condições de sentar no meio fio pra destampar o bueiro. Eis que a moça saiu do seu cantinho, onde sentadinha atravessou o município agarrada ao estepe do carro, arrancou as pulseiras dos braços, arregaçou as pernas da bermudas e, num movimento que eu descreveria como cho-can-te, arrancou a tampa do bueiro. Uma Wonder Woman carioca, poderosa, impávida! Okay. Primeira etapa, a de destampar o bueiro, superada, mas quem ia descer naquele buraco escuro pra resgatar o gadget? De cara, eu, na minha condição de Peppa tupiniquim portadora de necessidades especiais, fui descartada. Tentem imaginar um botijão de gás com vestido de renda entalado num bueiro. Seria eu, né? A Mulher Maravilha carioca também não ia caber, então sobrou pro meu amigo, o único cuja forma física permitia ousar se aventurar pelo buraco estreito. E foi assim que nosso sábado espiritualizado e cheio de axé findou, com o babalorixá dentro do bueiro, descalço e pescando meu celular com a ponta dos dedos.


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Os dias se seguiram, eu com uma dor que me dava a impressão de estar participando de um reality show de sadismo, em que uma paciente com Chikungunya era espancada com um cabo de vassoura. Domingo, eu arrisquei uma ida à casa da minha afilhada Dorinha, mas peguei o carro para andar alguns poucos quarteirões, aquela derrota. Segunda à tarde, recebi um zap do gerente do banco, dessas coisas mais que surreais: "Olá Juliana. Tudo bem? Foi ao médico? Já fez os exames? Espero que tudo corra bem". Eu levei 24 horas pra elaborar que tipo de resposta eu daria. Esse cara não para de me surpreender... Uma amiga me sugeriu mandar um emoji de florzinha, que é bem inespecífico e simpático. Assim fiz. Eu não queria responder pra ele "Tô toda doída e lidando com mais de 4.000 Mitos de despesas médicas extraordinárias esse mês. Não está tudo bem! Vai me oferecer dinheiro de graça? Vai me pagar um dia de spa?". Ao invés disso, fui meiga e respondi "Tudo caminhando bem. Obrigada🌷". Acho que foi a primeira vez que usei esse emoji de florzinha, mas como disse essa amiga, emoji é vida e melhor não brigar com o gerente, a gente nunca sabe quando vai precisar dele. Ontem acordei bem melhor, me sentindo uma fênix ressurgindo das cinzas. Uma fênix meio capenga e cheia de fuligem nas penas, é verdade, mas nada se compara à semana que passou. Eu tinha consulta com o Dr XY, mas acabei me enrolando toda, além de estar sem energia pra passar horas na sala de espera, então desmarquei. Semana que vem cumprirei essa missão cívica, mas ontem fiquei devendo. Eu já falei pra vocês que a secretária do Dr. XY é a encarnação brasileira da Whoopi Goldberg? Pois é, nem lhes conto...

 
 
 

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