Reveiando
- Juliana Netto
- 17 de dez. de 2019
- 6 min de leitura
Dezembro chegou sem me dar chances nem de pensar no tanto que eu tinha planejado, e no tanto que eu não cumpri. Não surpreende, já que esse foi o ano da voadora nos peitos (literalmente). Em compensação, ganhei novas aptidões, como ter paciência pra filas de bancos, mais tolerância com a terceira idade do Largo do Machado, e tô ficando boa mesmo em organizar recibos médicos pra pedir reembolso. Dia desses, semana passada, acordei com o caboclo arrumador e separei os exames por tipos, as declarações, termos de consentimento, laudos, tudo em pastinhas que eu coloquei dentro da mega pasta de arquiteto que eu comprei pra carregar meu "prontuário". Também ando bastante amiga da terceira idade aqui da vila. Meu vizinho da esquerda, um português muito simpático que faz caminhadas matinais na vila, tá quase nos 90 anos, mas o problema dele, além de surdez parcial, são as pedras nos rins. Toda vez que uma "agarra" ele corre pro hospital e depois me conta como foi a saga. Tem a senhorinha que é muito religiosa, reza por mim e também manda umas comidinhas de vez em quando. O problema é que a coitada não cozinha bem. João contou uma história de quando ele e os meninos da vila eram pequenos, e ela resolveu fazer uns pastéis pra eles, no maior amor. Pastel não tem como ser ruim, cara... Mas as crianças jogaram os pastéis no lixo, alegando que não dava pra comer. Ai, que dó... Desde a consulta com o Dr. RT, eu tinha ficado meio cabreira. A coisa não fluiu, fiquei com aquela sensação de que às vezes ele não escutava o que eu falava. Ligou pra Dra XX, discutiu o caso, e eu saí da consulta com o combinado de que iria irradiar apenas a mama esquerda. Passaram-se duas semanas da consulta, eu ainda não tinha me recuperado totalmente daquela conversa com o Dr. RT. Eu sou médica, claro que estudo sobre meus problemas e não sou uma Poliana, mas a pessoa ficar reforçando os aspectos ruins, sem dar aquele conforto, não ajuda em nada, nem se o paciente for leigo, nem se ele for médico. Ainda mais depois que a criatura já arrancou os peitos e quase vinte gânglios do suvaco, e está se sentindo, enfim, no direito de dar uma respirada. Terça passada, dia 10, fui fazer a primeira consulta de enfermagem na unidade de radioterapia. A enfermeira começou a me falar sobre os efeitos colaterais do tratamento, disse que a dificuldade de engolir poderia demorar, mas ia chegar, e que eu iria irradiar a mama, axila e fossa supraclavicular, vulga saboneteira. Eu comecei a achar tudo muito estranho, e comentei que o combinado tinha sido preservar a drenagem do braço pra evitar aumentar o risco do indesejado e inconveniente linfedema. Ela lamentou, mas disse que os planos do Dr. RT pra mim eram aqueles mesmo. Saí de lá atordoada e cheia de adesivos para proteger as marcações, feitas depois de uma tomografia com os peitos de fora, com um técnico que só me disse pra tirar "toda a parte de cima", mas não me ofereceu um avental, um lugar para eu me despir em paz, nem um ganchinho pra pendurar a bolsa. Ficou ali mexendo na máquina enquanto eu tirava a blusa e o sutiã, como se eu estivesse trocando de roupa ao lado de uma pessoa muito familiar. Pra piorar, eu fiz o exame olhando praquelas máscaras para marcação de rádio para cabeça e pescoço. Tudo muito esquisito... Pra quem já assistiu, eu estava me sentindo aquele médico da série New Amsterdam, da Fox Premium. Cheguei em casa bem aborrecida e, quando eu fico assim, preciso de dormir pra organizar a cabeça. Parece mágica. Uma vez, ainda adolescente, eu resolvi uma questão de uma prova de física, dormindo. Acordei no meio da madrugada e pulei da cama correndo, pra registrar o raciocínio. Os vizinhos de frente deram um balanço pro filho. Desses clássicos, de ferro, que rangem nos parquinhos. Acontece que o moleque adora aquele troço e passa horas balançando sem parar. Essa virou a trilha sonora do meu quarto... Imagina eu, depois daquela bordoada na clínica de radioterapia, chateada, tentando entender uma situação bizarra, e o balanço rangendo ao fundo. Fui então me refugiar no quarto do João, nos fundos da casa, onde apaguei por uns quarenta minutos. Acordei entendendo tudo. Não era um engano da enfermeira, que poderia não saber exatamente qual o plano de tratamento. Era uma mudança completa no combinado, sem comunicação prévia do médico com a paciente, no caso, eu. Escrevi pra Dra XX, e ela confirmou que o combinado era outro, que ele não havia comunicado nenhuma mudança, e me orientou a entrar em contato com o dito cujo. Eis que Dr. RT superou todas as expectativas. Ele havia saído de férias, e só retornaria no final de dezembro. Mandei mensagem mesmo assim, e umas quatro horas depois ele respondeu, dizendo que havia discutido meu caso e haviam decidido irradiar todas as drenagens linfáticas da mama. Eu fiquei passadíssima, morta na Avenida Brasil, de caaaaaara, bege, ou melhor, roxa de raiva. Se eu não fosse médica, não perceberia, o que seria muito grave, a meu ver. A esta altura, eu já estava bem resolvida de que não faria o tratamento com o Dr. RT. A gente tem que cruzar com o santo do médico, e o meu e o dele estavam condenados a sair no tapa para sempre. Dra XX e um outro colega que eu respeito muito, indicaram uma médica lá nos Estados Unidos da Barra da Tijuca, bem depois da fronteira, mas achei que estava valendo a pena a viagem e topei na hora. Catei a pasta de exames e fomos pra lá, eu e Guga. Na calçada do hospital, quase fomos atropelados por uma Mercedes novinha, só pra deixar claro que a gente tinha saído do conforto da nossa zona sul do B, para um outro universo...mas vamos à consulta com a Dra L. Alívio no coração define! Ok, não vou escapar da irradiação na fossa, aka saboneteira, mas estou livre, com segurança e embasamento, de irradiar a axila. Acima de tudo, Dra L é humana, enxerga uma pessoa e não apenas um tumor na frente dela. Exemplo disso, é que me deixou tomar meu banho de mar no Ano Novo, coisa que parecia algo a ser punido com chicote e castigo no cantinho do pensamento, na outra situação em que me encontrava. Até descobri que Dra L já havia encaminhado paciente para mim, vejam vocês. Eu sou daquelas pegadas na intuição, e agora acho que estou bem parada e amparada. Tão convicta, que topei fazer a radioterapia lá nos United States of Barra da Tijuca. Serão vinte e oito dias úteis viajando de Laranjeiras pra Barra, passando horas no engarrafamento, mas a causa é nobre. A enfermeira que me atendeu por lá, também não decepcionou, foi carinhosa e receptiva como a antiga enfermeira que me recebia antes da consulta pré quimioterapia, que era dessas pessoas felizes e sempre capazes de botar a gente pra cima. Sinto falta dela, mas sei que ela deve estar animando as pessoas em algum lugar que está precisando mais. Os finais de semana de dezembro são muito agitados aqui em casa, já que o João transforma a casa em boulangerie e produz panetones loucamente. A segunda feira chegou rápido e junto a primeira sessão de radioterapia. Uma coisa é a gente encaminhar um paciente pra radioterapia, dizer que é tranquilo, admirar a modernidade do equipamento e tal. A outra, é a gente estar deitada no aparelho, com um pregador no nariz, respirando por uma traquéia e fazendo ciclos de 25 segundos de apnéia enquanto a máquina dá voltas e joga radiação durante uns dez minutos. Às vezes parece que eu estou num filme, que não é verdade o que está acontecendo...tudo meio ficção científica, sabe? Eu hoje falei da viagem que fiz com o João no final de janeiro, começo de fevereiro, como as férias do ano passado. Foi tanta coisa que aconteceu, que parece que fevereiro está muito, muito distante, que aquelas duas semanas maravilhosas não fizeram parte de 2019. Na minha psicologia de boteco, acho que é a sensação da distância da "vida normal", da época em que eu não vivia em consultas, tomando remédios, fazendo cirurgias. Acho que por isso é tão importante pra mim escrever, pra organizar a cabeça e, ao mesmo tempo, registrar essa viagem que no momento me parece filme do Buñuel. Eu sou uma pessoa meio inconformada, daí quando o Dr. M, o cirurgião plástico, disse que eu não ia poder treinar pra São Silvestre de São Paulo, eu resolvi organizar a São Silvestre da URSAL, e no último domingo de dezembro, faremos uma volta olímpica ao redor da praça São Salvador, com um bocado de gente amiga presente, com camisas personalizadas e largada dada pelo soar dos pratos do Luizinho da Caipirinha. Vai ser lindo, todo mundo de vermelho, que é a cor do amor, com uma camisa com a arte feita pelo Marcelo Sobral, onde se vê o nosso coretinho e os dizeres "Ninguém larga a mão de ninguém". É isso, o ano de 2019 está chegando ao fim. Muitos seguraram minha mão, recebi muitos abraços, muitos beijos e muito amor. Não classificaria como um ano ruim, mas como um ano diferente.

Sexta passada fui à Fiocruz, para o almoço de final de ano do Hospital-Dia. Quando eu cheguei, haviam reservado uma vaga na frente da porta, e os amigos do setor onde trabalho se emperfilaram para me receber aos gritos de "Juliana, Juliana"! Essa pessoa durona que vos escreve, ficou emocionada.
Agora toca pra conseguir dormir, porque amanhã cedo tem viagem pros United States of Barra da Tijuca de novo.



Lindona!!💪🏼💪🏼💪🏼
Pena não ter ido ao H Dia ver vc.Espero que nos vejamos na corrida. Vc é inspiração seja na São Salvador ou lá no Barra States.🥰