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Um janeiro branco

  • Foto do escritor: Juliana Netto
    Juliana Netto
  • 25 de jan. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 26 de jan. de 2020

Quanto tempo sem escrever... Faltou vontade de falar sobre o que me acontecia. Porque não acontecia nada que eu quisesse falar sobre. Eu não queria dizer que uma das geladeiras quebrou, no ápice do verão, no meio das festas de final de ano, e me obrigou a gastar muitos dinheiros que eu não queria, já que estou fazendo economia pra segunda cirurgia de reconstrução dos peitos que, anseio, fiquem mara. Aí, enquanto pessoa esclarecida que acho que sou, me dei conta de que não queria falar sobre nada, porque as coisas não estavam saindo como eu queria. Simples assim. Lembra que eu era aquela moça cartesiana, aquariana mas com lua em virgem, que achava que podia controlar tudo na vida? Pois é, tomei mais umas bandas, recentemente. Eu estava indo muito bem, recuperando o "fitness", mas quando começaram a nova medicação e a radioterapia, eu fique miserável, e depois só miseravelzinha, quando entrei num certo "equilíbrio" que me permite ir à radioterapia depois de dirigir uma hora até os Estados Unidos da Barra da Tijuca, almoçar, e fazer uma ou outra coisinha rápida como comprar uns víveres no Hortifruti, antes de capotar um bom bocado à tarde. Às vezes não consigo dirigir pra casa, por isso Guga sempre vai comigo, pro caso de eu já voltar caindo pelas tabelas. Eu dou o descanso que o corpo pede, o tempo passa, e lá pelas oito e meia da noite eu arrisco uma pedalada no rolo, assistindo a um filme, ou me forço a ir na academia, fazer um dos intervalados de corrida e caminhada, que é o que tá dando pra fazer. As tardes são de cansaço. Não é preguiça, é uma fadiga, uma fraqueza, que só melhora se eu deitar e descansar. Minha casa tem muitas escadas, e elas são o maior desafio. Um trotezinho na esteira não me impõe metade do sofrimento de olhar para a escada e pensar em quantos degraus me separam de um copo de água gelada. A Dra L perguntou se eu sentia vontade de matar ela toda vez que olhava a escada. Não, Dra L é muito boazinha pra ter raiva dela. Ela bota boa parte da conta do meu penar pra cima da radioterapia. Acho ótimo quando o médico assume que seu tratamento não é lá uma moleza. Ela diz que eu venho sendo muito atropelada e que a pancada de agora, foi um golpe de misericórdia nessa carcaça que nem se sabia tão cansada. Depois que eu fiquei na vala pós infusão do último imunoquimiocombo suave para os cabelos, cheia de manchas roxas e falta de ar, Dra XX mandou suspender o tratamento até o fim da radioterapia, não seria seguro manter os dois porque a radiação pode potencializar os efeitos colaterais do tratamento, em alguns pacientes "abençoados" como eu. Fiquei toda pimpona, achando que ia ficar mega disposta mas, para minha frustração, as pernas continuam queimando horrores a cada vez que subo até a cozinha, e eu preciso me sentar por alguns segundos quando alcanço o terceiro andar. Enfim, Dra L me prometeu que umas duas ou três semanas depois de terminar o tratamento, vou começar a me sentir mais disposta. Vamos ter fé!


Meu aniversário é dia nove de fevereiro, e o do João dia dez. Ele vai fazer quinze anos! Parece que foi ontem que, no dia oito de fevereiro, inchada como uma nave mãe, uma mistura de Preta Gil com a rena do nariz vermelho, remei ao redor da praça São Salvador carregando ele na barriga, atrás de um bloquinho de carnaval dos amigos de um amigo do Guga, que estreiou naquele ano, e no dia seguinte recebi nossos velhos amigos em casa, para a última festa sem o João do lado de fora. Curiosamente, anos depois, aqueles amigos do amigo do Guga, do bloco Bagunça Meu Coreto, viraram uma grande familia pra gente. Na ocasião, Dr XY, que já estava presente na minha vida, estava aflito pra fazer meu parto logo, porque eu estava prestes a explodir e ele estava com aquele jeitão preocupado, porque achava que alguma coisa poderia dar muito errado naquela história. Convenci o querido XY a esperar pelo menos até dia dez de fevereiro, pra que o menino nascesse com um dia só dele. Eu acho ruim esse negócio de mãe fazer aniversário no mesmo dia que o filho, mas no dia seguinte acho aceitável. Dia dez de fevereiro, Guga acordou meio pudim de cerveja das comemorações da véspera, e ficou filmando tudo o que acontecia com uma câmera VHS. Minha mãe ficou em casa, passando as roupas do neto, e Guga chegou a filmar a vovó atracada na tábua de passar, muito orgulhosa em deixar os conjuntinhos do neto impecáveis. Na Perinatal, eu me lembro de já estar anestesiada quando a barriga começou enfim a contrair e se preparar para o parto. Era mesmo o dia dele, já tínhamos a sintonia desde a barriga. Do mesmo jeito que eu pedi pra adiar o parto, pedi pra adiar o reinício da medicação venosa pra depois do nosso aniversário. Eu fiquei traumatizada depois de dormir no estacionamento do Mundial na véspera do Natal, desejando qualquer coisa que acabasse com aquele sofrimento. Imagina esse corpo cansado recebendo de novo o tal remédio na véspera do aniversário de quinze anos do filho... Mas nem pensar! Pedi à Dra XX, que é casada com o Dr XY, dois dias de clemência. Não vai mudar assim meu prognóstico... E quando a gente tá doente, quer mais é aproveitar cada minuto que pode com as pessoas que ama. Tem dias que eu fico de saco cheio disso tudo, depois melhora. Claro que só vou comemorar mais um aniversário com esperança de muitos outros, por causa de todo o tratamento e da equipe linda que cuida de mim, mas a gente tem o direto de dizer que tá cansada, que queria que não fosse assim tão penoso. Grata sim, abnegada não.


Guga é um buda. Atura meu mau humor, os meus calores noturnos, e tem me forçado a fazer coisas que me fazem muito bem, mas que só faço se alguém me obrigar. No final de semana, fomos à Visconde de Mauá. Ele queria fazer trilhas e outras atividades impensáveis pra mim, mas se dispôs a trotar naquele meu ritmo de reabilitação cardíaca, só pra me fazer companhia. Depois de pouco mais de um kilômetro, quando surgiu a primeira subida, eu dei sinais de falência e sentei no meio fio. Terminamos na praça de Maromba comendo pastel, que era uma atividade muito mais condizente com a minha capacidade fisica do momento. Pelo menos deu pra pegar a energia da mata e das cachoeiras. Ontem, ele me disse pra levar um biquíni pra radioterapia. Chovia em Laranjeiras, nada indicava que fosse ser minimamente razoável ir à praia, mas ele sabe que eu amo o mar mas por hora não posso pegar sol. Levei o biquíni na mochila e, como o clima da Barra não necessariamente é o mesmo do centro do Rio, estava um mormacinho bom quando saí da máquina. Ele me convenceu a entrar numa loja e comprar uma camisa com proteção UV, e lá fomos nós pra praia. Ele foi correr na areia, e eu, só de caminhar um pouco, senti que aquele não era o terreno pra arriscar uns trotes. O resgate no SAMU seria inevitável. Como estava com o bronzeado Chernobyl protegido pela camisa, sentei na areia pra esperar. Olhei o mar, andei um pouco pra cada lado, e curti aquele barulho das ondas grandes quebrando no mar muito mexido. Super zem, até que uma família ligou um som bem alto com um pagode esquisito, e acabou com a minha graça. Tomei um banho de água do mar no chuveiro do quiosque, também por insistência do Guga. Aquele sal fez um bem danado... As técnicas da radioterapia tem reforçado os adesivos da marcação, pra eu poder me molhar à vontade. Elas lembraram que a partir da outra semana, vou poder tomar banho de cachoeira sem as marquinhas e adesivos. Umas fofas! Tão diferente do outro lugar onde inicialmente eu faria o tratamento... Parecia um pecado a pessoa que tá toda sofrida suar ou se molhar pra se refrescar, no meio do verão do Ridejanêro. Para alguns profissionais de saúde, parece que o paciente tem que se emular num sacrifício bíblico em nome da cura. Cruzes!


Ainda ontem, quando estava me trocando no vestiário da clínica, pra colocar aquele avental mara (só que não), percebi no espelho quantas marcas eu carrego no corpo. Duas cirurgias, três drenos, cortes pelo sutiã pós cirúrgico que era muito apertado e machucava à beça, a perda de um mamilo, e agora as queimaduras da radioterapia, que eu chamo carinhosamente de bronzeado Chernobyl. Essas marcas mostram um pouco do que passei, e do que ainda estou passando. A imagem pode parecer chocante para alguns, mas eu me sinto até mais forte com elas. São pequenas vitórias, etapas cumpridas nesse tratamento que eu jamais imaginei que seria tão longo.

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Essa foto não pretende ser um nude boladão, nem chocar os convivas, mas registrar as marcas de quase um ano de tratamento. A internet está cheia de fotos de mulheres sobreviventes de biquíni, exibindo os belos contornos das próteses por trás de pedaços de tecido que escondem as cicatrizes.


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Claro que com as marcas cobertas eu fico com uma carinha bem mais palatável.


Serão quarenta e seis anos, e que venham mais quarenta e seis. Quero chegar aos noventa com um sorriso no rosto, andando atrás do Bagunça Meu Coreto.

 
 
 

1 comentário


alexiasuprani
27 de jan. de 2020

Ju, te amo te amo te amo!!! Isso tudo vai passar e nós vamos seguir pulando!!!

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