Vogue, vogue
- Juliana Netto
- 6 de jun. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 12 de jul. de 2019
Pra quem sempre trabalhou muito, é desconfortável entrar de licença médica. Só a idéia já deixa a.pessoa que nem um siri na lata quente. A primeira reação é fazer um monte de planos: vou escrever três artigos, um capítulo de livro, descansar bastante, fazer exercícios duas vezes ao dia e ainda ir ao Estação Botafogo pelo menos uma vez na semana, sem falar em colocar toda a literatura em dia, porque no vai vem cotidiano, quem não acumula uma pilha de livros pra ler quando sobrar aquele tempo? Esse tempo "de sobra" é que nem a saída da Caverna do Dragão, a gente acha que encontrou, mas toda a vez quebra a cara. Voltando à licença, a gente não aceita que vai deixar de ser aquele show de produtividade, que trabalha, cuida de casa, hortifruti, mercado e do resto da vida, pra ficar cuidando da própria saúde, entre clínicas, laboratórios e, obviamente, casa. Acrescente a isso, aquele lado mulher feminista que se acha inatingível e inabalável. Toca a campainha! Peeeeeeem! Choque de realidade, bonita. Pra começar, acho que existe uma energia cósmica que não me deixa fazer nada nessa vida com calma, nem ficar doente sossegada eu consigo. Cai logo um teto de quarto, entram água, Noé, duas zebras, duas girafas e só não descem os hipopótamos porque entalam no buraco. Aí aparece fungo preto na parede, precisa arrancar até armário embutido, e a gente se desespera porque precisa acabar com aquele caos antes do próximo nadir chegar. Nadir é aquele momento do tratamento em que a pessoa recupera a disposição, diminui a canseira e acha que tá óooootema. A criatura tá toda pimpona, mas com a imunidade no pé, sujeita a infecções que não são ameaças a pessoas normais. Por exemplo, no nadir passado, eu esqueci que não estava com as minhas defesas muito nos trinques e resolvi tomar um café da manhã regado a frutas, descascadas e frescas, fora de casa. Batata, o castigo veio sem dó, pra eu não esquecer que quando a imunidade da gente tá na vala, tem que ser vigilante e obediente, pra dar menos trabalho pro corpo que já tá se virando como pode.
Semana passada foi bacana, até quarta-feira. A Dra XX ficou animada com a resposta ao tratamento e eu fui faceira pro meu último ciclo de FEC, a quimioterapia vermelha. Quero deixar bem claro que não terei qualquer nostalgia dessa fase. A gente treme igual vara verde, com touca gelada na cabeça, um monte de troço frio entrando pela veia, ar condicionado bombando e ainda tem que chupar gelo por um tempão. Junto chega aquele gosto dos garfos de ferro da vovó Efigênia... Ainda bem que isso passa rápido. Nos dias seguintes, o inchaço. Eu fico parecendo uma versão bronzeada da Peppa Pig, até os braços rolicinhos, com os pés queimando, mas quem disse que dá pra relaxar com a reforma comendo solta na casa? Sábado fui ao cinema com o João e o Guga. Filme lindo, Varda por Agnès. Eu estava muito empolgada, mas na hora que eu parei... Dormi de um jeito na cadeira do cinema, que acordei com o barulho do saco de pipoca batendo no chão. Os outros expectadores devem ter adorado. Por um lado, tem uma coisa boa da minha vida ser essa maluquice, mesmo quando eu deveria "parar" pra fazer esse tratamento. Não dá espaço pra ficar lamentando e nem tempo de ficar dizendo que o corpo tá doendo, que tô com isso ou aquilo. Acho até que é uma grande sorte isso tudo. Imagino que se tivesse tempo de estar à toa, estaria chata pra caceta, enchendo os pacová de quem tá em volta com meus resmungos, prestando atenção a cada sintoma que pudesse significar um efeito colateral da quimioterapia. Eu só queria um pouco mais de concentração, porque o corticóide dos primeiros dias é que nem o pó que o Aecim gosta, pode até diminuir o sono, mas numa dose pra javali parrudo, deixa o foco prejudicado. Aprender a relaxar com o fato de que agora eu não dou conta de muita coisa, que tudo bem se eu não tenho condições de nadar, porque subir três lances até o terraço já é um exercício e pode me deixar ofegante como se tivesse subido uma duna do Saara ao meio dia, se eu não consigo ler e escrever como eu desejo, além de ter que pedir ajuda pra coisas que habitualmente eu resolveria sozinha, tudo isso é um aprendizado. Toca a ser humilde, negrinha insolente!
A grande vantagem, é que quando isso terminar, a casa vai estar lindinha. Quem já passou por essa de ficar muito tempo em casa, sabe que a gente passa a reparar em absolutamente tudo. O quadro que está torto, o sofá que precisa de mais almofadas, o armário cheio de roupas pra dar. E a gente se ocupa dessas "besteiras" que fazem um bem danado pra cabeça, ainda mais pra uma pessoa que já teve um armário lotado de coleções de revistas de arquitetura e decoração. À noite, quando sobra tempo, eu e Joao asssitimos a filmes antigos e, durante o dia, enquanto organizo as coisas, tenho tempo de escutar bastante jazz, o que é literalmente bom pra cachorro. Os meus, tão adorando! Tenho sorte de ter um filho com uma alma meio velha, que nem eu sempre fui, pelo menos nos gostos musicais e cinematograficos. Ele tambem tá na onda da fotografia e das artes plásticas, uma companhia perfeita pra essa mãe "licenciada" e cheia de manias. Ontem, depois de reorganizar o quarto do "xovem", com a ajuda da nossa maga Márcia que, aliás, merece ser canonizada por topar ajudar a reduzir o caos da nossa vida vindo apenas uma vez por semana nessa laje do Ipiranga, terminamos a noite assitindo Gilda. Eu amo Gilda, já tive dois vestidos de festa inspirados no modelo da épica performance (Put the blame on Mame, boys!) e tenho um poster do filme, pequenininho, na parede da sala de TV. E todo mundo sabe: There was never a woman like Gilda! Sabiamente, disse a outra diva, Rita Hayworth, gave good face! (...) Vogue, vogue...





Querida, já aguardo os próximos posts até a finalização desta luta.
E ofereço novamente o ombro (ouvido) para algum alívio em horas difíceis.