Sete horas e meia na poltrona do papai.
- Juliana Netto
- 20 de jun. de 2019
- 5 min de leitura
Sabe aquelas propagandas cafonas das Casas Bahia, que anunciam a "poltrona do papai"? Aquelas propagandas bem machistas que mostram um caboclo deitado numa poltrona toda acolchoada, que reclina as costas e eleva os pés, e às vezes até aquece e faz massagem? O cabra lá relaxando, tomando uma cerveja gelada e assistindo ao jogo de futebol enquanto, suponho, a mulher está na cozinha preparando a comida do machão. Então...quem já entrou num salão de quimioterapia sabe que todos eles são equipados com essas belezuras, afinal, a criatura, aka paciente, vai passar horas alí, e não merece ficar sentada numa cadeira comum. Porém, todavia, contudo, entretanto, mesmo essas confortáveis cadeiras tem um limite do razoável de tempo que um ser humano aguenta ficar preso a elas. Eu já tinha passado, 4h e 30min, 5h, mas nunca SETE HORAS E MEIA (isso aí, caps lock e merece até negrito e underscript, porque foi de lascar). Aí cês juntam a bunda quadrada com o frio da moléstia e a touca apertada congelando os miolos. Pelo menos não consegui parar pra ler o Twitter e fiquei o dia todo alienada, fazendo um detox das maluquices da República das Bananas nesta quarta-feira. Ainda rolou uma dose louca de corticóide pra evitar reação alérgica a um quimioterápico que foi introduzido ontem. Pros amigos médicos, tomei o equivalente a 200mg de prednisona em 24 horas, pra ainda assim ter asma depois da infusão. Tô de parabéns! Imagina a cabeça que já não é muito certa, com esse monte de dexametasona nas idéias... Durante as inacreditáveis sete horas e meia que passei na poltrona do papai, recebendo os fluídos mágicos, recebi a visita da Isinha, que deu uma bela animada na tarde, dormi de meias listradas e coberta até as orelhas, assisti a The Good Doctor, pensei em nada e também pensei em tudo. Isso tudo com as bochechas espremidas no elástico da touca, uma exótica mistura de Kiko do Chaves, com o Professor Xavier, que também fica preso ali na maquininha dele.

Outrossim, a semana teve belos momentos! Até o domingo, trabalhando dez pontos de hematócrito abaixo do meu basal, e com a hemoglobina caindo, não estava conseguindo correr mais de 500m sem parar pra caminhar, quase estrebuchando na ciclovia. As idosas falantes me ultrapassavam com passos vigorosos, mulheres empurrando carrinhos de bebê, qualquer um se deslocava com mais agilidade e menos sofrimento do que eu. Terminei sentada à sombra de um coqueiro, vermelha e ofegante, à beira de um colapso e desejando uma transfusão de concentrado de hemácias pro almoço. Ontem de manhã, fui atraída ao brejo, pra sentir a energia do mar e a força da natureza, e fui dar uma corridinha pré QT. Nāo é que no total, consegui trotar 5k? Parece uma bobagem pra quem antes corria maratonas, mas no momento é como correr 30k, tão emocionante quanto, pra essa tiazona que aqui vos fala.

Semana passada, na sexta-feira, nasceu minha afilhada, Dora. O amor em forma de mini pessoa. E no meio desse momento em que eu enfrento uma doença que faz a gente temer a morte, nasce uma nova vida, uma força linda que renova e transforma, e dá vontade de viver e estar bem pra acompanhar ela crescendo e descobrindo o mundo. Dorinha, a dinda tá toda catrevada e radioativa, mas penso em você o tempo todo.

Falando em renovação, os cabelos voltaram a crescer. Santa iluminação do sujeito cervejeiro que resolveu usar a tecnologia das serpentinas pra ajudar as mulheres que enfrentam a quimioterapia. Genial! Essa galera da cachaça tem o seu valor, ninguém pode negar! Aquelas pequenas alegrias...consegui fazer um rabicozinho e colocar um boné pra correr, sem precisar de bandana por baixo. Outra coisa que parece bobagem, mas resgata a auto imagem, é importante bagarai.


Segunda-feira eu e Guga completamos dezenove anos de juntamento. Dezenove anos, compas! Ano que vem vou poder pedir musiquinha. Muito fácil seria se não tivéssemos diferenças, desacordos, problemas, boletos pra pagar, mas não teria graça e nem motivo pra comemorar. É justamente escolher continuar juntos, apesar das dificuldades que faz o casamento ser tão especial. Amor é isso, é escolha, aquele voto que se renova todo dia, mesmo que eu às vezes brinque que achei meu marido numa liquidação de um brechó. Ter alguém do seu lado, que não deixa de te amar se você tem mais ou menos cabelo, se está magra ou roliça de corticóide, com jeito de Peppa 🐖 afro-brasileira. E a gente fez juntos o João, esse companheiro incrível.
E as surpresas vem de todo lado. Hoje de manhã, um amigo, o Guilherme Calvet, compartilhou comigo um sonho que teve, e eu vou transcrever aqui, porque achei muito bacana. "Bom dia Juliana. Vou compartilhar um sonho que tive com você essa noite que achei bem significativo. Eu estava caminhando com você em um mar vermelho, mas não era de água. Tinha consistência de piche e grudava muito nas nossas pernas. Mas com dificuldade a gente caminhava nesse mar vermelho e no horizonte visualizávamos uma linda praia. E no final do sonho a gente conseguia chegar são e salvos na areia, com sensação de Vitória. E acordei. Achei muito significativo pela cor vermelha que você faz referência a QT, a dificuldade de caminhar por todas as limitações que o tratamento traz, mas que com perseverança e determinação o fim foi sua Vitória contra a doença!!! Muita força mesmo e qualquer coisa pode falar!! Beijos." Demais, obrigada por compartilhar, Guilherme!
Ontem à noite, quando cheguei do challenge de paciência da QT, uma vizinha da vila veio me trazer pêra e bolo de laranja, porque disse que vai cuidar de mim. Hoje cedo, ela trouxe um pudim de leite inteirinho, que preparou pra mim. Uma fofura só! Eu fico sem jeito de dizer que não posso me encher de doces, mas grazadeus o João palito de dentes tá liberado pras gulodices.
Vou encerrar com um texto que foi compartilhado no Instagram do Grupo Oncoclinicas, que achei demais, muito representativo desse momento, em que tenho muitas limitações, mas também recebo muito amor, e percebo a vida de outro jeito, com outros olhos e outros valores. Eu me sinto uma pessoa melhor a cada dia, mas ainda não consegui deixar de ser debochada, aí acho que só nascendo de novo.
"Lidar com uma doença grave e ameaçadora da vida pode parecer um golpe devastador. Ao mesmo tempo, costuma ser um momento de muita reflexão sobre nossas fragilidades, limitações, sobre o que já construímos e o que ainda há por fazer.⠀
Amigos e familiares são essenciais, mas não é incomum que nesse período, novos laços de amor se formem e outras pessoas, que talvez você nem imaginasse, passem a fazer parte do time que se une para fortalecer sua fé no tratamento, sua fé na vida."



Conheço a mulher de peitos de ferro desde menina sem peitinhos e sua força esteve lá desde sempre. Ju, você atravessa mares de todas as cores e para quem sempre foi salva vidas estender a mão , quando preciso, não vai ser difícil. Bora nadar, pedalar e correr nos percursos que a vida apresenta. Você está em uma equipe que te ama. Beijo